No Mês do Orgulho LGBTQIA+ de 2025, a resistência ao envelhecimento tornou-se um foco central de debates e discussões. Ativistas e idosos LGBTQIA+ compartilharam os desafios e conquistas de suas vidas, marcadas por lutas contínuas, e destacaram a crucial importância da representatividade para as novas gerações.
A História de Yone Lindgren: Uma Vida de Luta e Resistência
Yone Lindgren, aos 69 anos, é uma figura emblemática do ativismo LGBTQIA+ no Brasil. Mãe de cinco filhos, incluindo um filho de criação, e avó e bisavó, Yone assumiu sua identidade lésbica aos 15 anos, em 1971, enfrentando o silêncio constrangedor de um almoço familiar. Sua madrinha, Ascendina, prontamente a defendeu, silenciando qualquer tentativa de discriminação. A memória de Ascendina, assim como a de seus filhos e sua militância, está registrada em mais de 50 tatuagens que adornam seu corpo.
Desde então, Yone testemunhou e participou ativamente da luta contra a repressão da ditadura militar (encerrada em 1985), a patologização da homossexualidade (desconsiderada pela OMS em 1990), o estigma e o luto durante a epidemia de HIV/AIDS dos anos 1980 e 1990, e a construção gradual dos direitos LGBTQIA+ nas décadas seguintes. “Eu tenho um amigo que define isso muito bem”, conta Yone, “ele diz: ‘nós somos os fuscas do movimento LGBTQIA+. Quanto mais velhos, mais bonitos'”, brinca a ativista e fotógrafa.
O Envelhecimento como Tema Central na Parada do Orgulho LGBT+ de São Paulo
Biografias como a de Yone, de pessoas que sobreviveram a épocas de violência e invisibilidade e pavimentaram o caminho para as liberdades sexuais e de gênero, ganharam destaque no Mês do Orgulho LGBTQIA+ de 2025. Diversas iniciativas colocaram o envelhecimento no centro do debate, como a Parada do Orgulho LGBT+ de São Paulo, que escolheu este tema para mobilizar uma multidão, consolidando-a como a maior passeata pelos direitos civis da comunidade no mundo. “Se a gente não trabalhar muito bem o envelhecimento das pessoas, a gente vai acabar dentro das gavetinhas de novo, todo mundo separado e conseguindo muito pouco”, alerta Yone, ressaltando a demora do movimento em reconhecer a importância dessa discussão, em contraste com movimentos como o negro e o indígena, que incorporaram a ancestralidade em sua luta.
Yone lamenta que muitos companheiros se recolham por dependerem de famílias não-aceitadoras ou por vivenciarem a solidão. A ativista cita a trágica experiência de uma pessoa trans que morreu sozinha em seu apartamento, apenas descoberta uma semana depois, como um exemplo da crueldade da invisibilidade. Em resposta, Yone mantém contato ativo com amigos mais velhos, demonstrando preocupação e afeto, independentemente de sua identidade. “De vez em quando, pego o WhatsApp e mando mensagem para todas as pessoas mais velhas que eu conheço. Por que você sumiu? Cadê você? E, nessa hora, eu não quero saber quem você é, eu quero saber como você está”, relata.
Memória e Futuro: Celebrando a Resistência e a Dignidade
A Parada do Orgulho LGBT+, realizada em 22 de junho na Avenida Paulista, celebrou histórias como a de Yone. Nelson Matias Pereira, presidente da Associação da Parada do Orgulho LGBT+ de São Paulo, defende que lutar pelo envelhecimento com dignidade significa lutar para que ninguém seja deixado para trás. “Envelhecer é uma conquista, mas, para muitas pessoas LGBT+, ainda é um desafio marcado pelo abandono, pelo silenciamento e pela ausência de políticas públicas. Em 2025, a Parada do Orgulho LGBT+ de São Paulo levanta a voz por quem resistiu, construiu e segue sendo exemplo de coragem”, afirma Pereira.
Além da Parada, o Museu da Diversidade Sexual inaugurou a exposição fotográfica “O Mais Profundo É a Pele”, em 30 de maio, exaltando os corpos de 25 pessoas LGBTQIA+ de diversas idades, gêneros e etnias, incluindo Yone Lindgren. Rafael Medina, o fotógrafo da exposição, explicou que a falta de referências de homens gays mais velhos em sua juventude se deveu à crise de HIV/AIDS e à violência na comunidade. “Hoje, acredito que vivemos um outro momento e é oportuno contar essas histórias e mostrar esses corpos. Mas também pensar em outra maneira de envelhecer além das ideias de que a vida acabou e que não é mais possível sonhar e amar”, disse Medina.
O Projeto LGBT+60: Corpos que Resistem e a Importância da Empatia
A crescente conscientização sobre o envelhecimento LGBTQIA+ é resultado de trabalhos como o do jornalista Yuri Alves Fernandes, criador do projeto “LGBT+60: Corpos que Resistem”. Este projeto, iniciado na plataforma #Colabora e atualmente em sua terceira temporada, já alcançou mais de 10 milhões de visualizações. “A pauta do envelhecimento tem que ser cada vez mais forte, porque é sobre o futuro, e o futuro é amanhã, logo ali. E não só sobre o nosso futuro, mas também sobre o presente daquelas pessoas que já estão na terceira idade e precisam, às vezes, de um olhar mais atento, uma rede de apoio”, afirma Fernandes, que busca transmitir empatia através de seu trabalho. “Eu gostaria era que a gente conseguisse olhar mais para nossos vieses preconceituosos e os trabalhasse de forma que não atingisse as pessoas da nossa própria comunidade. A gente já é tão marginalizado desde criança, então, que pelo menos com os nossos a gente pudesse ter essa empatia”, complementa.
Lançado em 2018, o projeto já recebeu mais de dez prêmios nacionais e internacionais, incluindo o Prêmio Criador de Notícias de Excelência em Jornalismo de Vídeo Independente do ICFJ. “Me emociona muito quando eu vejo pessoas trans, principalmente, comentando que, pela primeira vez, viram um idoso trans, uma idosa trans, e que, agora, consegue se ver também na terceira idade. Então, essas histórias ensinam as pessoas a pensarem no futuro, a acreditarem que vão chegar lá, porque a gente vem de uma falta de representatividade na terceira idade muito grande”, finaliza Fernandes.
Encontro Geracional e a Necessidade de Fortalecer Vínculos
Diego Felix Miguel, especialista em gerontologia e presidente do Departamento de Gerontologia da Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia em São Paulo, destaca que a importância do tema na Parada LGBT+ de São Paulo não se limita a falar sobre pessoas idosas, mas também a abordar o envelhecimento como um processo universal. “Precisamos pensar sobre como fortalecer esses vínculos intergeracionais dentro da própria comunidade, em criar espaços de valorização, de escuta e de protagonismo das pessoas idosas LGBT, para que elas possam, a partir das suas histórias, da sua fala, das suas vivências, passar esse bastão para as novas gerações. Para que a gente entenda que esse processo de resistência custou a vida de muitas outras pessoas que, infelizmente, não estão mais entre nós”, explica o especialista.
Além disso, Miguel enfatiza a importância de monitorar os direitos da comunidade, as demandas e a forma como as políticas públicas as atendem. “É importantíssimo que a gente fique sempre em alerta sobre como estão sendo tratados os nossos direitos, por quem são tratadas as nossas demandas, e como que são feitas e realizadas essas escutas. Até sobre a execução de políticas públicas que de fato precisam existir para acolher a nossa própria comunidade e as nossas demandas. Não só das pessoas idosas, mas de todas as pessoas que estão envelhecendo.”
Coletividade contra a Solidão: Um Envelhecimento Mais Feliz
A solidão e a falta de redes de apoio são desafios comuns para os LGBTQIA+ ao envelhecer, muitas vezes afastados dos laços familiares tradicionais. Jorge Caê Rodrigues, professor universitário aposentado e ativista, de 70 anos, enfatiza a importância da coletividade para um envelhecimento mais pleno. “Recorrer à luta coletiva, recorrer aos grupos, e nos reunirmos é muito importante para que a gente possa viver o envelhecimento. A gente tem que pensar que a velhice é uma consequência positiva. A gente tem que pensar que, se eu envelheci, eu estou vivo”, afirma. Ele ressalta a imposição social de uma juventude perpétua e defende a união e a discussão sobre o envelhecimento como um ato de resistência.
Viúvo desde 2019, após 39 anos de relacionamento com o ativista John Mccarthy, Jorge encontrou apoio no Grupo Arco-Íris, que co-fundou. Os encontros regulares com outros homens gays acima de 50 anos, iniciados há dez meses, se transformaram em jantares nas casas dos membros, criando uma rede de apoio contra a solidão. “De repente, me vejo com 60 anos, e aí, com a velhice chegando, você começa a ter outros tipos de preocupação. A saúde passa a ser algo muito importante. E a sociabilidade. A solidão para mim é uma questão muito forte. E é uma questão que durante muito tempo foi esquecida, foi abandonada”, confessa Jorge, que voltou a namorar e mantém um relacionamento há quatro anos, inspirando-se em Ney Matogrosso como exemplo de envelhecimento ativo e pleno.
Travestis e Mulheres Trans Idosas: Ancestrais da Resistência
As travestis e mulheres trans enfrentam os desafios do envelhecimento de forma ainda mais dramática. A Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra) denuncia que, para muitas, ultrapassar os 35 anos é uma prova de sobrevivência em um país que as marginaliza. Para Bruna Benevides, presidente da Antra, travestis e pessoas trans idosas são monumentos vivos de resistência. “Cada travesti ou mulher trans que alcança a velhice é uma rachadura no sistema de morte que tenta nos destruir. Elas são arquivos vivos de uma história que a sociedade insiste em apagar. Carregam nos corpos as marcas da luta, da marginalização, mas também da sabedoria, da construção coletiva e da reinvenção. São verdadeiras ancestrais do futuro, pois muitas delas participaram ativamente da construção de direitos e das referências que hoje temos”, declara Bruna.
A Antra lançou o projeto Traviarcas, que investiga as condições de vida, saúde e envelhecimento de mulheres trans e travestis com mais de 45 anos. Os dados coletados servirão para a elaboração do relatório “Traviarcas: Diagnóstico sobre os Desafios para o Envelhecimento de Travestis e Mulheres Transexuais Brasileiras”. “Celebrá-las é romper com a lógica do descarte, é dar nome e rosto ao futuro que o Brasil tanto nos nega. Elas não devem apenas ser lembradas em eventos pontuais, mas incluídas na formulação de políticas, nas universidades, nas decisões sobre os rumos da nossa luta. A velhice trans não é o fim de um ciclo: é a consagração de uma existência teimosa e profundamente digna”, conclui Bruna Benevides.