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Maranhão: Grilagem e agrotóxicos expulsam povos do Cerrado e secam rios

Maranhão lidera conflitos agrários: povos do Cerrado são expulsos de suas terras no sul do estado por grilagem e agrotóxicos, ameaçando rios e vidas.
Maranhão grilagem agrotóxicos
Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil

O Maranhão se destaca lamentavelmente no cenário nacional como o estado que mais registra conflitos agrários, uma realidade que ameaça a subsistência e a cultura dos povos do Cerrado. Neste contexto alarmante, a grilagem de terras e o uso intensivo de agrotóxicos estão expulsando comunidades tradicionais de seus lares no sul maranhense, ao mesmo tempo em que provocam a seca de rios cruciais para a região. Tais conflitos fundiários emergem primordialmente da crescente expansão da fronteira agrícola brasileira, impactando diretamente a vida de inúmeras famílias.

Ameaça Constante no Vão do Uruçu

Em uma região a aproximadamente 300 quilômetros do centro de Balsas, um dos polos do agronegócio nacional no extremo sul do Maranhão, a Agência Brasil acompanhou recentemente representantes de famílias do Vão do Uruçu. Pela primeira vez, estes moradores tiveram a oportunidade de se reunir com uma advogada para discutir a complexa situação fundiária que assola suas comunidades rurais. Mais de vinte famílias de posseiros, consideradas guardiãs por ocuparem o Cerrado de forma sustentável com pequenos roçados, criação de gado solto e extrativismo, sofrem pressão para aceitar acordos que reduzem drasticamente suas áreas de trabalho para apenas 50 hectares ou para abandonarem suas terras. Ademais, essas famílias suspeitam que um grupo de grileiros esteja por trás da tentativa de expropriação, visando posteriormente repassar os terrenos para a produção de soja.

A paisagem do Vão do Uruçu, por sua vez, ainda preserva porções significativas do Cerrado nativo e abriga as nascentes do Rio Balsas, emoldurada por serras pedregosas e vastas lavouras de monocultura. Em uma manhã quente de outubro, no final do período seco, o clima entre os moradores era de apreensão, contudo, havia também uma ponta de esperança por conseguir auxílio legal, visto que a maioria não possuía recursos para custear a defesa de seus direitos na Justiça. Osmar Paulo da Silva Santos, um posseiro de 65 anos e pai de dez filhos, que vive da agricultura de subsistência e criação de animais, expressou seu desassossego. Ele lamentou que sua paz se desfez com as pressões: “Foi o desassossego maior que nós já tivemos. Antes desse povo chegar por aqui, nós todos vivíamos sossegados e tranquilos. E hoje a gente vive tão coagido por causa deles, que hoje a gente não tem mais como se virar”, confessou, admitindo ter considerado desistir de tudo.

Pesquisadores, ambientalistas e o governo federal reconhecem que o modo de vida e o controle territorial exercido pelos povos e comunidades tradicionais do Cerrado são fundamentais para a proteção de áreas que favorecem a recarga de rios e nascentes. Todavia, esses recursos hídricos têm diminuído ao longo das décadas. Salmon Leite Almeida, agricultor de 68 anos, queixou-se de que seu gado passa fome devido a um incêndio recente que devastou o pasto. Ele refuta a ideia de confinar-se a 50 hectares, pois “crio gado solto, não tem como criar gado solto em 50 hectares”. Além disso, ele acredita que “Eles querem essa terra para vender, não para plantar ou trabalhar a terra.” É importante notar que nenhum dos posseiros possui documentos de suas terras, apesar de ocupá-las há décadas. Entretanto, a advogada Rosane Ibiapino, do Centro de Defesa da Vida e dos Direitos Humanos, ligado à Diocese de Balsas, esclarece que a lei do usucapião garante a essas famílias o direito à propriedade, dada a ocupação prolongada, contínua e pacífica. Segundo Ibiapino, “Há mais de quatro décadas exercendo posse mansa e pacífica, essas famílias ocuparam a área, construíram suas casas, formaram suas famílias. Isso lhes garante o direito à posse e usufruto da área. Elas viviam isoladas há até bem pouco tempo.”

Maranhão Lidera Conflitos Agrários no Brasil

Em 2024, o Maranhão emergiu como o estado com o maior número de conflitos por terra ou água no Brasil, conforme dados da Comissão Pastoral da Terra (CPT). A organização, que monitora e compila informações sobre o tema em todo o país, registrou 420 conflitos, afetando 103 mil pessoas. Em comparação, o Pará, o segundo estado com os maiores índices, registrou 314 conflitos no mesmo ano. O juiz aposentado Jorge Moreno, que atualmente dirige o Comitê de Solidariedade à Luta pela Terra (Comsulote), descreve a situação maranhense como de “conflitos generalizados”. Ele enfatiza a gravidade da questão, afirmando: “Não existe um município do Maranhão, dos 217, que não esteja sofrendo algum tipo de violência, de assédio, de intimidação e de ameaça e muitos deles de assassinato mesmo de camponeses. A situação é muito grave.”

Escalada da Violência

Os moradores do Vão do Uruçu relataram ameaças veladas, incluindo disparos de armas de fogo próximos às residências. Osmar detalhou que uma tábua com pregos foi instalada na entrada das comunidades, com o intuito de furar os pneus das motos dos moradores. “Nós ‘tem’ corrido medo de uma bala variada acertar na gente. Lá em casa, são acostumados a ‘fazer fogo’ [efetuar disparos] para me amedrontar, só pode ser isso. Tem dia que a gente escuta as balas passarem zunindo por cima de casa. Por que eles não atiram para o outro rumo? Eles só atiram pro ‘rumo’ de casa!”, desabafou. No total, o Maranhão contabilizou 65 casos de violência contra pessoas em 2024, decorrentes de conflitos por terra ou água. Estes incidentes incluíram um assassinato, uma tentativa de assassinato e 51 ameaças de morte, segundo as estatísticas da CPT.

A Disputa por Terras e Seus Atores

Os posseiros narram que Sheila Lustosa Parrião, uma empresária, surgiu na região em 2020, reivindicando a propriedade das terras. Ela se apresentaria como herdeira de Lauro Castilho, um antigo proprietário que, segundo documentos do Cartório de Registro de Imóveis de Balsas acessados pela reportagem, nunca havia produzido no Vão do Uruçu, mantendo um latifúndio improdutivo. Originária de Palmas, Sheila se identifica, via aplicativo de mensagens, como representante da empresa Castelo Construtora, Incorporadora e Reflorestadora (Cacir Agro), com sede em Goiânia (GO) e filial em Balsas. A equipe de reportagem tentou contato com a empresária, que inicialmente prometeu encaminhar o caso ao seu setor jurídico, mas posteriormente não respondeu mais aos pedidos de manifestação sobre as denúncias dos posseiros.

Em 2023, o Ministério Público do Maranhão (MPMA) a acusou de ordenar que seus funcionários derrubassem uma ponte pública que conectava comunidades no Vão do Uruçu. O documento do MPMA afirma que “Em virtude do ocorrido, a Polícia Militar foi acionada, de modo que, ao chegar ao local, constatou a veracidade das informações. Os moradores relataram, ainda, que são constantes os disparos de arma de fogo na propriedade da denunciada, com o objetivo de intimidar os moradores da região.” No cartório de Balsas, a área em disputa está registrada em nome da empresa Penitente Empreendimentos e Participações, que compartilha o mesmo imóvel da Cacir Agro em Goiânia, embora em salas distintas. Ambas as companhias foram registradas em nome do empresário Ricardo Rocha Lima Paranhos, segundo dados do Ministério da Fazenda. A produção da reportagem tentou contato com as duas empresas por e-mail e telefone, porém, sem sucesso.

Financiamento e Hipoteca Enigmáticos

O registro do imóvel revela que a Penitente Empreendimentos, então denominada Azner Participações, adquiriu a área em disputa no Vão do Uruçu em março de 2022, pelo valor de R$ 2,5 milhões. Desde então, a empresa mudou de nome duas vezes. Curiosamente, o imóvel rural possui uma hipoteca em nome da Bunge Alimentos, uma das maiores companhias de alimentos do mundo, com sede na Holanda. Questionada, a Bunge declarou não manter “relações comerciais” com a Penitente, mas não esclareceu por que a hipoteca utilizou como garantia o imóvel alvo do conflito no Vão do Uruçu. O imóvel serve como garantia de financiamento da Bunge para o empresário Alzir Pimentel Aguiar Neto, vice-presidente da Associação Brasileira de Produtores de Soja do Piauí (Aprosoja-PI). A reportagem buscou comentários da Aprosoja-PI e de Alzir, mas não obteve retorno.

Impacto dos Agrotóxicos e Desmatamento

A pulverização aérea de agrotóxicos representa outra queixa persistente das comunidades tradicionais dos Gerais de Balsas. Eles denunciam que o uso de “veneno” lançado por aviões contamina o solo e as águas, além de prejudicar a saúde dos moradores. Após percorrer mais 30 quilômetros de estrada de terra, entre serras e extensas plantações de soja ou milho, a reportagem visitou outra comunidade, no chamado Vão do Uruçuí, no Médio Gerais de Balsas. Os moradores da comunidade Boa Esperança, onde vivem 40 pessoas da agricultura de subsistência e prestando serviços a fazendas locais, relatam que, antes da chegada do agronegócio, a viagem até a sede do município (a cerca de 100 quilômetros) levava até três dias no lombo de um animal. Ao longo do caminho, foi possível constatar áreas recém-desmatadas; pilhas de raízes do Cerrado, essenciais para a infiltração da água da chuva em aquíferos subterrâneos, expostas sobre o solo, evidenciam o recente desflorestamento para o plantio de soja.

Os agricultores Fábio Soares Sousa, de 67 anos, e Raimunda Pereira de Carvalho, de 53 anos, pais de dez filhos, receberam a equipe com um farto almoço. Eles vivem em residências de taipa e cozinham em fogão à lenha; a energia elétrica chegou à comunidade há aproximadamente quatro anos. Embora reconheçam alguns benefícios do agronegócio, como a abertura de estradas que encurtaram a viagem a Balsas para duas horas de carro, a família lamenta profundamente o uso intensivo de agrotóxicos e o desmatamento, que prejudicam nascentes e cursos d’água. Fábio Soares critica: “Não devia poder avião jogar agrotóxico aqui em cima da gente mora. A soja está na beira dos Vãos, dos baixões, e tem que passar o veneno na soja toda, aí [o avião] vai fazer o retorno aqui por cima das casas, aí o vento vem todinho [trazendo o agrotóxico]”. Fábio e Raimunda afirmam que a pulverização aérea afeta a saúde da família, além de atribuir à soja a redução do volume de água. Raimunda lamentou: “As crianças se sentem muito mal e a gripe se renova sempre. Além disso, o brejo [riacho] está morrendo por falta de água. Antigamente, quando íamos pegar buriti dentro do brejo, era atolando água no meio da canela. Agora, está tudo seco.” Dados do Ministério da Saúde indicam uma média de 1,9 mil intoxicações por agrotóxicos por mês em todo o país. Em Balsas, entre 2018 e 2023, o número de intoxicações anuais girava em torno de dez, mas em 2024, esse total quase triplicou, atingindo 27 notificações.

A Resistência de Miúdo e a Cultura do Cerrado

Conhecido como Miúdo devido à sua baixa estatura, o camponês Fábio Soares Sousa conta que seu avô já habitava essas terras desde o final do século XIX. Atualmente, cercado por fazendas por todos os lados, Miúdo reclama que aproximadamente 150 hectares de suas terras foram tomados para o plantio de soja. Embora o caso esteja na Justiça, ele nutre poucas esperanças de reaver a área. Apesar de nunca ter frequentado a escola, Miúdo aprendeu a ler e escrever, e possui vasto conhecimento sobre as plantas, frutos e animais do Cerrado. Além da agricultura familiar, a comunidade subsiste da extração de frutos típicos do bioma para a produção de polpa, como pequi, buriti, bacaba, buritirana e bacuri. “A polpa do bacuri está caríssima, R$ 38,00 o quilo”, revelou ele. O trabalhador rural reitera que jamais abandonará sua comunidade, apesar dos apelos dos fazendeiros da região para que venda sua propriedade. Ele explica: “Dizem que estou velho e devo morar na cidade, perto dos serviços de saúde. Mas gosto de morar na roça. Enquanto estiver vivo não saio daqui.”

Ação Governamental e Desafios da Regularização Fundiária

Com o propósito de reverter o histórico do Maranhão como um dos estados com mais conflitos agrários no país, o governo estadual elegeu a regularização fundiária como um dos quatro eixos prioritários de sua gestão. Consequentemente, lançou em 2023 o Programa Paz no Campo. Anderson Pires Ferreira, presidente do Instituto de Colonização e Terras do Maranhão (Iterma), informou que o programa já entregou 18 mil títulos de propriedade, beneficiando 22 mil famílias, e regularizou 27 comunidades quilombolas. Além disso, o Iterma registrou 300 mil hectares de “terras devolutas”, que são áreas públicas ainda sem destinação. O presidente do Instituto de Terras também destacou os esforços no combate à grilagem. Ele afirmou: “Já foram mais de 150 mil hectares de terras griladas retomadas para o patrimônio do Estado, tendo sido feito todo o procedimento de cancelamento de matrícula.”

Anderson Ferreira acredita que esse trabalho contribuirá para a redução dos conflitos no campo maranhense. “É o governo que mais entregou títulos na história do Maranhão. Dessa forma, cada um tendo o que é da sua posse, a gente pacifica o estado”, ressaltou. Ao mesmo tempo, Ferreira reconhece que a expansão da agropecuária no Cerrado tem intensificado os conflitos fundiários. Ele explicou: “À medida em que a agropecuária vai se expandindo, aparecem essas matrículas frágeis que não têm geolocalização. Quanto mais aumentam as áreas de produção, mais essas áreas vão encontrar posseiros, agricultores familiares e comunidades tradicionais.” Ferreira lembrou que o Maranhão enfrenta problemas fundiários seculares, e a resolução desses conflitos depende da atuação de diversos órgãos estaduais, incluindo o Judiciário. Ele ainda destacou a ausência de regularização quando as terras passaram da Coroa para a República, e a complexidade pós-Constituição de 1988: “Após a Constituição de 88, o Estado se depara com inúmeras matrículas muito frágeis nos cartórios de registro, sem geolocalização. Ainda não existia georreferenciamento, que começou a partir dos anos 2000.” O georreferenciamento é o processo de mapear a localização exata de um imóvel, utilizando, entre outros instrumentos, satélites. Finalmente, o presidente do Iterma defendeu a regularização fundiária como essencial para a preservação ambiental, concluindo: “Sem regularizar o território, não tem como você manter a floresta de pé.”

Sobre a Série Especial “Fronteira Cerrado”

Esta reportagem é a terceira parte da série especial Fronteira Cerrado, que explora os impactos do avanço do agronegócio no bioma sobre os recursos hídricos do país. Novos conteúdos serão publicados. A produção desta série foi possível graças à Seleção de Reportagens Nádia Franco, uma iniciativa da Empresa Brasil de Comunicação (EBC) que destinou R$ 200 mil para financiar conteúdos especiais. Dos 54 projetos inscritos, oito foram selecionados por um conselho editorial. A jornalista Nádia Franco, editora da Agência Brasil, dedicou 49 anos à comunicação pública e faleceu em agosto de 2025. Além disso, o Instituto Sociedade, População e Natureza (ISPN) custeou as passagens aéreas da equipe até Imperatriz (MA).