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Violência contra a mulher: São Paulo tem recorde de feminicídios em 2025

Com recorde de 53 feminicídios na capital paulista até outubro, 2025 é marcado por casos brutais de violência contra a mulher em todo o estado.
Feminicídio São Paulo 2025
Foto: Tânia Rêgo/Agência Brasil

A capital paulista registrou um número alarmante e inédito de 53 feminicídios até outubro de 2025, um marco que infelizmente destaca um ano de violência brutal contra a mulher em todo o estado de São Paulo. Este recorde, superior a qualquer período desde o início da série histórica em 2018, acende um alerta urgente sobre a persistência e o agravamento da violência de gênero no país.

Casos Recentes Chocam a População

A gravidade da situação ficou evidente com dois casos de grande repercussão na capital paulista na última semana. No sábado, dia 29, uma mulher de 31 anos foi brutalmente atropelada e arrastada por aproximadamente um quilômetro, resultando em mutilações severas nas pernas. Posteriormente, na segunda-feira, dia 1º, um homem efetuou disparos com duas armas contra sua ex-companheira no local de trabalho dela, uma pastelaria, chocando a comunidade local.

O delegado da Polícia Civil de São Paulo, Fernando Barbosa Bossa, responsável pela investigação do atropelamento, classificou o episódio como tentativa de feminicídio. Segundo ele, o crime foi cometido com requintes de crueldade e impediu qualquer defesa da vítima. Como resultado da violência, a mulher teve as pernas amputadas e permanece internada, lutando pela recuperação em um hospital da cidade.

Combate à Violência de Gênero: Um Esforço em Múltiplas Frentes

Para a advogada Luciane Mezarobba, especialista no atendimento a mulheres em Curitiba, o enfrentamento à violência de gênero exige uma abordagem dupla, atuando tanto nas políticas públicas quanto na esfera privada. Primeiramente, ela defende que o poder público deve reconhecer as profundas desigualdades estruturais entre os gêneros. Além disso, é fundamental construir coletivamente políticas públicas eficazes, incluindo ações afirmativas e antidiscriminatórias, que visem alterar a posição da mulher na sociedade.

Entre as iniciativas que poderiam aliviar as demandas básicas frequentemente sobrecarregando as mulheres, a advogada sugere a ampliação de creches e escolas em período integral. Tal medida permitiria que as mães trabalhassem com a segurança de que seus filhos estão bem cuidados. No âmbito do Poder Judiciário, Mezarobba ressalta a relevância do Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero, implementado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), como uma ferramenta crucial para os profissionais do Direito que buscam superar essa triste realidade. O objetivo central desse protocolo é guiar o Judiciário a considerar o impacto das desigualdades estruturais ao julgar conflitos envolvendo mulheres.

A Insuficiência das Leis e a Questão da Punição

Apesar da existência de leis robustas, como a que estabelece a pena de 20 a 40 anos de reclusão para o crime de feminicídio, Mezarobba argumenta que a ausência de normas não é o problema. A advogada lamenta que nem mesmo a perspectiva de décadas de prisão seja suficiente para inibir agressores de assassinar suas companheiras, parceiras ou namoradas. Nesse sentido, ela enfatiza a necessidade de o Estado garantir uma punição justa aos homens agressores de mulheres. Isso, por sua vez, implica um combate rigoroso às redes de ódio e misoginia que proliferam nas redes sociais, muitas vezes disfarçadas de “liberdade de expressão” e protegidas pelo anonimato. A situação, em suma, requer enfrentamento e aplicação da lei com o máximo rigor.

Educação e Raízes Históricas da Desigualdade

Na esfera privada, Luciane Mezarobba destaca a importância da educação emancipatória e não machista. Ela preconiza um ensino que não reforce os estereótipos de gênero nem a divisão sexual das tarefas domésticas, mas que, ao contrário, construa ambientes de igualdade de direitos e deveres entre todos os membros da família. Mensagens profundamente enraizadas desde a infância, que delimitam o lar como espaço feminino e os ambientes públicos e de poder como masculinos, devem ser ativamente combatidas no seio familiar, conforme pontua a advogada.

Corroborando essa perspectiva, a psicóloga e pesquisadora da Universidade de Brasília (UnB), Maisa Guimarães, explica que a desigualdade entre homens e mulheres possui um longo histórico. Ela foi social e formalmente validada por legislações e instituições ao longo do tempo. Consequentemente, essa validação resultou em uma cultura atual de amplos privilégios masculinos e opressões femininas. Segundo a pesquisadora, essa desigualdade de poder não se restringe apenas à cultura do senso comum; ela se estende a uma história política e legislativa que, por séculos no Brasil, concedeu direitos aos homens enquanto os negava às mulheres.

Guimarães relembra que a ideia de igualdade de poder e direitos entre homens e mulheres é uma postura política relativamente recente no Brasil. Somente após o Estatuto da Mulher Casada, promulgado no final da década de 60, as mulheres casadas foram reconhecidas como civilmente capazes de exercer direitos básicos, como a escolha da própria profissão. O cenário contemporâneo de violência contra a mulher, portanto, reflete essa tradição patriarcal, que estabelece hierarquias estruturais e mantém as mulheres em posição de subordinação. Além disso, a advogada Luciane Mezarobba observa que, quando o agressor é alguém próximo, tanto as pessoas ao redor quanto a própria vítima tendem a ignorar os sinais de risco.

A Escalada da Violência e o Recorde de Feminicídios

Mezarobba esclarece que a violência doméstica e familiar assume diversas formas, e raramente o agressor inicia com a mais grave. A Lei Maria da Penha detalha essas modalidades: violência física, psicológica, sexual, patrimonial e moral. Infelizmente, as agressões frequentemente tendem a escalar, alimentadas pela certeza da impunidade e pela visão, ainda lamentavelmente aceita socialmente, de que “em briga de mulher, ninguém mete a colher”. Outro fator é a crença equivocada de que o homem possui poderes conferidos pelo patriarcado sobre o corpo e a vida da mulher, o que perpetua o ciclo de violência.

Os dados da Secretaria Estadual de Segurança Pública de São Paulo (SSP-SP) confirmam o alarmante aumento: entre janeiro e outubro de 2025, foram registrados 53 casos de feminicídio na capital paulista. Este número já representa o maior índice anual desde o início da série histórica em 2018, mesmo sem incluir os dados referentes a novembro e dezembro. Em todo o estado de São Paulo, 207 mulheres foram vítimas de feminicídio desde o começo do ano. Apenas em outubro, 22 mulheres perderam a vida devido a esse tipo de crime, enquanto outras 5.838 sofreram lesão corporal dolosa.

O feminicídio é definido como o homicídio de uma mulher cometido em razão do seu gênero, frequentemente caracterizado por violência doméstica e familiar, menosprezo ou discriminação contra a condição feminina. Representa a expressão máxima da violência de gênero, muitas vezes sendo o desfecho de um histórico de agressões. Pode ser motivado por ódio, sentimento de inferioridade imposto à vítima ou um senso de posse sobre ela. No Brasil, é classificado como crime hediondo e, quando qualifica o homicídio, prevê pena de reclusão de 12 a 30 anos.

Subnotificação e a Resistência à Autonomia Feminina

A pesquisadora Maisa Guimarães avalia que o atual esforço político visa minimizar a subnotificação desses casos e aprimorar a aplicação de protocolos de investigação de mortes violentas de mulheres, priorizando o feminicídio como a principal hipótese a ser investigada. Essas políticas públicas, segundo ela, proporcionam maior visibilidade à problemática, que sempre existiu, mas era frequentemente obscurecida pela falta de registros adequados. Contudo, Guimarães ressalta que o aumento nos casos de agressão e feminicídios também reflete um agravamento das violências sofridas pelas mulheres. Um dos fatores decisivos é a resistência masculina à ampliação dos direitos femininos, como o direito de escolher com quem se relacionar.

A pesquisadora explica que, muitas vezes, o agressor não apenas recusa a separação, mas também a autonomia da mulher sobre a própria vida. Trata-se de uma recusa à alteridade, ao direito das mulheres de fazerem suas escolhas e viverem suas vidas conforme desejam. Em última análise, é uma recusa masculina em abandonar uma posição de exigência e dominação sobre o que, em sua visão distorcida, as mulheres deveriam fazer, desejar ou escolher, perpetuando assim o ciclo da violência.