Sementes da Comunidade: Restauração Ambiental e Renda no Xingu
No coração do Mato Grosso, a Rede de Sementes do Xingu (RSX) floresce como um exemplo de como a restauração ambiental pode caminhar de mãos dadas com a geração de renda para comunidades locais. Mais de 700 coletores, espalhados pela região, fornecem sementes para projetos de recuperação florestal, utilizando a inovadora técnica da “muvuca”, que imita os processos naturais de regeneração da floresta.
Vera Oliveira, uma ex-doméstica de 55 anos de Nova Xavantina (MT), exemplifica o impacto da RSX na vida das pessoas. Para ela, a coleta de sementes não é apenas um trabalho, mas uma conexão profunda com a natureza, herdada desde a infância. “Eu me criei na fazenda. Quando a gente era pequenininho, papai sempre ensinava o nome das árvores. Então eu já tinha um conhecimento da natureza e gostava muito de sair andando pelo mato”, relembra Vera, descrevendo sua jornada de coleta que abrange áreas urbanas e rurais, estendendo-se até cidades próximas como Pindaíba, Água Boa e Campinápolis.
A Origem da Rede e a Técnica da Muvuca
A RSX, fundada em 2004, surgiu de uma iniciativa para recuperar as margens degradadas do rio Xingu, que percorre os biomas do Cerrado e da Amazônia, desde as serras do Roncador e Formosa em Mato Grosso até a foz do rio Amazonas no Pará. Segundo Lia Domingues, da coordenação da rede, “A Rede de Sementes do Xingu surge como resultado da busca por uma solução para cuidar da saúde do rio. O que a gente podia fazer para cuidar da saúde do Rio? Plantar às margens e nas cabeceiras do rio. E para plantar, era preciso ter sementes”. Inicialmente voltada para a recuperação das margens do Xingu, coordenada pelo Instituto Socioambiental (ISA), a iniciativa evoluiu, a partir de 2007, para um fornecedor de sementes para empresas, fazendeiros e outras instituições engajadas em projetos de restauração florestal.
A técnica empregada pela RSX é a semeadura de “muvuca de sementes”, uma mistura de diversas espécies que, ao serem espalhadas, imitam a sucessão ecológica natural. A engenheira florestal e mestre em Ecologia e Conservação, Aline Ferragutti, analista técnica do Redário (um projeto do ISA que articula 27 redes de sementes), explica que “O modelo de plantar com mudas… não apresentava bons resultados aqui na região. Então o pessoal começou a experimentar uma outra técnica, que é a semeadura direta de muvuca de sementes”. Este método, ao contrário do plantio de mudas, apresenta maior sucesso na região, segundo Aline, porque “esse plantio imita muito o processo natural do meio ambiente. As espécies nascem quando há um ambiente propício para isso”.
O Processo de Coleta, Distribuição e Restauração
O trabalho da RSX é contínuo. Anualmente, os coletores, organizados em grupos, informam a coordenação sobre a disponibilidade de sementes. Em seguida, um catálogo é elaborado e disponibilizado aos interessados. Após as encomendas, os coletores iniciam a coleta, que dura alguns meses. Após a coleta, as sementes são separadas por espécie e, posteriormente, misturadas em lotes de muvuca, prontas para uso.
A muvuca inclui uma variedade de espécies, incluindo algumas não nativas, mas de rápida germinação, que auxiliam no controle de plantas invasoras. Espécies como feijão-de-porco, feijão-guandu, abóbora, gergelim e girassol são exemplos. Essas espécies de ciclo curto atuam como adubo verde, preparando o solo para o desenvolvimento das espécies nativas, que também compõem a muvuca, e que farão parte da vegetação permanente. Aline Ferragutti destaca que, “além da facilidade na implantação… e do grande número de plantas estabelecidas por área, uma das vantagens da semeadura é que, diferente do plantio de mudas, as espécies não são plantadas do mesmo tamanho no mesmo momento”. Esse processo, portanto, garante uma sucessão ecológica natural e eficiente.
Impacto Econômico e Social da RSX
Em 2024, com a ajuda do Redário, as redes comercializaram 18,5 toneladas de sementes de 186 espécies. Entretanto, a RSX, de forma independente, superou este número, comercializando 30 toneladas de sementes. Para empresas como a Energisa, que por meio do projeto Floresta Viva do BNDES restaurou 700 hectares de vegetação nativa na região do Xingu, a compra de sementes da RSX se mostra uma solução eficaz e econômica. Michelle Almeida, coordenadora de Gestão da Sustentabilidade da Energisa, afirma que “A gente tem uma atuação muito forte dentro da Amazônia e a gente direcionou o nosso foco para esse bioma. Apesar de a gente ter um negócio que dialoga muito com a transição energética, a gente sabe que existem impactos. A nossa existência gera impacto, imagina um negócio. Então a ideia é mitigar aquilo que está gerando impacto negativo”.
Além do impacto ambiental, a RSX gera renda significativa para famílias indígenas, quilombolas, agricultores familiares e moradores urbanos, melhorando suas condições de vida. Aline Ferragutti relata que “Tem famílias hoje em dia que têm, na renda das sementes, a maior renda deles. Tem pessoas que conseguiram comprar carros”. Lia Domingues complementa que a coleta impacta a vida das mulheres de forma abrangente, “cria redes de afeto e de amizade, elas aprendem muitas coisas novas, muitas delas desenvolvem qualidade de liderança, elas viajam, tem uma dimensão espiritual da coleta também”. O testemunho de Vera Oliveira sintetiza o sucesso dessa iniciativa: “Quando eu parei de trabalhar como doméstica, minha filha achou que a gente ia passar fome. Com as sementes, eu consegui comprar uma bicicleta nova, depois uma moto e um carro. E também arrumei minha casa. Foi aí que minha filha passou a acreditar que a gente não ia mais passar fome”.