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Saber indígena é a chave para recuperar áreas degradadas, revela pesquisa

Pesquisadora Bárbara Borum-Kren demonstra que a memória biocultural e a retomada de terras pelos povos originários são cruciais para a recuperação ambiental e a revitalização cultural, com estudos nos EUA e foco no Brasil.
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Foto: Bárbara Flores Borum-Kren/Arquivo Pessoal

A recuperação de ecossistemas degradados e a vitalização cultural dos povos originários encontram um caminho promissor no saber indígena, conforme revela a pesquisadora Bárbara Flores Borum-Kren. Seus estudos destacam que a memória biocultural e o movimento de retomada de terras são fundamentais para forjar socioecossistemas resilientes e prósperos, com experiências nos Estados Unidos que servem de inspiração para o Brasil.

A Profecia da Águia e do Condor e o Retorno às Origens

Uma antiga profecia, compartilhada por diversas etnias nativas do continente americano, evoca o encontro da águia, representando o Norte, e do condor, simbolizando o Sul. Este voo conjunto prenuncia a união de todos os povos originários de Abya Yala, denominação ancestral para o continente americano. Nesse sentido, a pesquisadora Bárbara Flores Borum-Kren interpreta que “a profecia se concretiza sempre que os povos indígenas superam fronteiras geográficas impostas para construir coletivamente o bem viver”. Ademais, seu trabalho de pesquisa busca justamente concretizar essa visão, defendendo que a reocupação de áreas degradadas pelos seus povos originários constitui a estratégia mais eficaz para promover a recuperação ambiental e, simultaneamente, revitalizar práticas culturais milenares.

Pesquisa Transcontinental: Intercâmbio de Conhecimentos Indígenas

Atualmente, Bárbara realiza um pós-doutorado na Universidade do Colorado, nos Estados Unidos, onde investiga a realidade territorial de povos como os Ute, Walatowa, Navajo, Lakota, Odibwe e Yurok, espalhados por cinco estados norte-americanos. A pesquisadora tem o objetivo de “promover um intercâmbio de saberes com povos indígenas que estão vivenciando ou já vivenciaram a restauração da memória biocultural, ao mesmo tempo em que me aprofundo no movimento ‘land back’ (retomada da terra), que é bastante vigoroso aqui, pelo reconhecimento dos Estados Unidos como território indígena”. Sua pesquisa foi viabilizada pelo Programa Beatriz Nascimento para Mulheres na Ciência, do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPQ). Além disso, Bárbara também foi uma das contempladas por um edital de apoio a cientistas negros e indígenas do Instituto Serrapilheira.

Memória Biocultural e Cascatas Socioecológicas: Pilares da Recuperação

A metodologia de Bárbara Borum-Kren fundamenta-se em dois conceitos primordiais: a memória biocultural e as cascatas socioecológicas. Segundo ela, “a complexa teia de relações construída ao longo de muitas gerações, por milênios, entre os povos e o território, forja um laço tão forte que se assemelha a um parentesco, que inclusive chamamos de floresta genealógica. Esta seria a memória biocultural sob a ótica indígena, conectando as dimensões biológicas do território com as questões culturais.” Consequentemente, a pesquisadora argumenta que intervenções em terras devastadas devem levar em conta a memória biocultural de seus habitantes originais, desencadeando as cascatas socioecológicas. Estes são processos em cadeia que resultam tanto na restauração ambiental quanto no resgate identitário desses povos. Por exemplo, a pesquisadora sugere que “levantar todas as plantas e animais de importância cultural para nosso povo, identificando sua distribuição e quantidade no território, permite um diagnóstico preciso para planejar e executar intervenções eficazes.”

Lições dos EUA para o Contexto Brasileiro

Bárbara sinaliza que algumas experiências nos Estados Unidos podem oferecer direções valiosas para o Brasil. Em Colorado e na Califórnia, por exemplo, “já são implementados projetos de restauração ecológica em colaboração com povos indígenas, empregando seus conhecimentos tradicionais para recuperar áreas degradadas. Similarmente, a gestão pública de parques naturais e áreas verdes é realizada em parceria com as comunidades indígenas que habitam esses territórios”, esclarece a pesquisadora. Entretanto, novas iniciativas têm enfrentado obstáculos devido às políticas educacionais do governo de Donald Trump, que vêm cortando o financiamento para pesquisas consideradas progressistas, como aquelas relacionadas aos direitos da população indígena e ao meio ambiente. Embora o trabalho de Bárbara ainda não tenha sido diretamente afetado, a Universidade do Colorado a orientou a não sair do país, mesmo para eventos internacionais, devido ao risco de impedimento de retorno.

A Jornada Pessoal e a Luta pelo Território Borum-Kren

O principal objetivo de Bárbara é que o conhecimento adquirido nos Estados Unidos possa enriquecer seu trabalho, iniciado ainda na graduação, focado na retomada e recuperação do território Borum-Kren, localizado em Ouro Preto, Minas Gerais. Foi essa aspiração, aliás, que a impulsionou a ser a primeira pessoa de sua família a ter ensino superior. Desde a infância, ela buscava desvendar a história de seus ancestrais, ofuscada por séculos de massacres e dominação cultural. Os Borum-Kren são descendentes dos Botocudos, povo que, conforme a pesquisadora, foi perseguido e exterminado para facilitar a exploração do ouro. Os remanescentes, ainda de acordo com Bárbara, sofreram diversas formas de assimilação cultural violenta. Ela detalha que “os colonos recebiam títulos de terra ao se casarem com indígenas, o que infelizmente gerou muitos sequestros e estupros de mulheres. Além disso, havia um comércio de crianças indígenas para trabalho em carvoarias. Meu próprio avô foi escravizado, e seu irmão foi uma dessas crianças sequestradas.”

Demarcação e Resiliência: O Caminho para a Restauração Completa

Sem acesso às suas terras e enfrentando a pobreza extrema, a família de Bárbara se mudou para Belo Horizonte em busca de melhores condições. Durante sua infância, quando questionava sobre a história de seu povo, seu pai respondia que “todos já morreram”. Hoje, ela compreende que essa é uma verdade parcial e defende que os Borum-Kren não apenas resistiram à suposta extinção oficial – apesar de muitos terem sido forçados a abandonar suas terras originárias – como a retomada desses territórios é o melhor caminho para restaurá-los após anos de exploração. A pesquisadora enfatiza: “À medida que restauramos o território, simultaneamente restauramos a cultura. De igual modo, quando restauramos a cultura, também restauramos o território.” Contudo, segundo Bárbara, uma condição primordial para que essa transformação ocorra é o reconhecimento e a demarcação das terras usurpadas de suas populações originárias. Ela explica que “o reconhecimento legal dos territórios garante a possibilidade de desenvolver o trabalho de recuperação ambiental. A partir do momento em que o usufruto da terra pelo povo indígena é assegurado por lei, ações efetivas podem ser implementadas. Frequentemente, essas terras estão em zonas de amortecimento ou na divisa com parques naturais, e a demarcação acaba criando corredores ecológicos, expandindo, assim, as áreas protegidas.”

Vozes da Ressurgência: Wayrakuna e o Futuro Indígena

Atualmente, Bárbara se articula com outros jovens Borum-Kren remanescentes e integra o Movimento Plurinacional Wayrakuna. Este é o primeiro grupo de pesquisa no Brasil composto exclusivamente por mulheres indígenas, sendo que “Wayrakuna” significa “filhas do vento”. A pesquisadora conclui, compartilhando uma visão de futuro: “Há uma necessidade muito forte que minha geração sentiu de romper com esses destinos de morte, que pareciam uma predestinação. Queremos demonstrar que não é bem assim, que podemos agir de forma diferente, podemos realizar algo efetivo em prol da ressurgência.”

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