Professores da rede particular do Rio de Janeiro estão em alerta máximo devido a uma extensa lista que revela a prática de atrasos e a não quitação de salários e encargos trabalhistas por mais de cem escolas. A informação, que circula intensamente em grupos de redes sociais e aplicativos de mensagens, expõe instituições da capital fluminense e de outras cidades do estado que não cumprem suas obrigações contratuais com os docentes.
A Rede de Denúncias e Relatos dos Professores
Em diversos fóruns online, educadores cariocas compartilham experiências e informações cruciais sobre o mercado de trabalho. Contudo, o foco principal recai sobre a identificação de escolas problemáticas, aquelas onde, conforme alertam os próprios professores, os profissionais devem evitar trabalhar. A Agência Brasil teve acesso a uma dessas listas, que detalha mais de cem estabelecimentos de ensino com histórico de pagamentos irregulares ou inexistentes.
Ademais, os comentários associados a cada escola na lista são alarmantes, especificando as infrações trabalhistas. Algumas instituições, por exemplo, não apenas atrasam pagamentos, como também obrigam os funcionários a assinar recibos como se o salário tivesse sido pago corretamente. Outras, por sua vez, deixam de registrar carteira de trabalho ou, em casos mais graves, evitam o contato com professores que buscam cobrar os valores devidos. Notavelmente, a lista inclui escolas localizadas até mesmo na Zona Sul, uma área nobre da cidade, desmistificando a ideia de que o problema se restringe a regiões menos favorecidas.
Uma versão mais abrangente do levantamento, que tem circulado pelo menos desde 2024, aponta mais de 150 escolas. Entretanto, muitas dessas já encerraram suas atividades. A maioria das que ainda estão em funcionamento e constam na lista negra dos professores encontra-se predominantemente na Zona Norte do Rio de Janeiro.
Impacto Direto na Vida dos Docentes e na Educação
O professor João*, que teve seu nome alterado para proteger sua identidade, é um dos muitos profissionais que enfrentaram essa dura realidade. Ele relata ter passado por duas instituições de ensino que falharam em honrar os pagamentos e encargos trabalhistas. Em sua primeira experiência, os atrasos eram sucessivos, culminando no fechamento definitivo da escola. “A gente trabalhou de graça”, lamenta ele, evidenciando o profundo prejuízo financeiro e emocional.
Além disso, João* destaca o impacto direto dessa situação na qualidade do ensino. Segundo ele, a falta de pagamento gera uma alta rotatividade de professores, forçando os alunos a lidar com múltiplos docentes ao longo de um mesmo ano letivo. “Isso é ruim inclusive para o ensino e aprendizagem dos estudantes”, afirma. Posteriormente, em um segundo colégio, situado na Zona Sul e com mensalidades a partir de R$ 2,4 mil por aluno, os pagamentos também foram comprometidos. O salário mensal de João* nessa instituição era de R$ 2,5 mil, ou seja, quase o mesmo valor de uma única mensalidade. Ele ainda revela que precisou custear o próprio transporte em ambas as escolas, concluindo amargamente: “Em ambas as escolas, eu tive que pagar para trabalhar”.
Condições de Trabalho e a Visão Sindical
O Sindicato dos Professores do Município do Rio de Janeiro e Região (Sinpro-Rio) confirma que a experiência de João* não é um caso isolado. Atualmente, a entidade está engajada em 36 processos coletivos e aproximadamente três mil ações individuais, todas relacionadas a descumprimentos de normas trabalhistas em instituições de ensino privadas, incluindo escolas e faculdades.
Para Afonso Celso Teixeira, diretor do Sinpro-Rio, a desvalorização dos professores reflete uma visão da educação como mera mercadoria. Ele argumenta que, ao tratar estudantes e suas famílias como clientes de um produto, a dimensão humana e libertadora da educação é perdida, o que, por conseguinte, “está causando, inclusive, adoecimento mental do professor”.
Um estudo do Grupo Rabbit, de consultoria em gestão educacional, divulgado em 2022, corrobora essa preocupação. O levantamento revelou que os salários de professores em escolas particulares são, em média, inferiores ao piso nacional do magistério para a rede pública. Naquele ano, por exemplo, o piso era de R$ 3.845, enquanto a média salarial para professores da educação infantil em escolas privadas chegava a apenas R$ 2.250. “É um desrespeito à profissão”, reforça Teixeira.
Endividamento das Escolas Particulares: Uma Análise
Apesar de um crescimento de 1% nas matrículas em escolas particulares em 2024, em contraste com a redução de 0,4% na rede pública, nem todas as instituições privadas desfrutam de boa saúde financeira. No Brasil, cerca de 20,2% dos estudantes estão matriculados na rede privada, e o Rio de Janeiro se destaca com o segundo maior percentual (30,9%), ficando atrás apenas do Distrito Federal (32,3%).
Lucas Machado, presidente da Federação Intermunicipal de Sindicatos de Estabelecimentos Particulares de Ensino do Estado do Rio de Janeiro (Fisepe/RJ), explica que a situação financeira das escolas é multifacetada. Ela depende da região, do perfil socioeconômico dos alunos e do porte da instituição. Segundo ele, 70% das escolas no Rio de Janeiro são consideradas pequenas, com menos de 300 alunos, e, consequentemente, enfrentam maiores dificuldades econômicas.
No entanto, Machado enfatiza que o endividamento não justifica a desvalorização dos professores. “O professor ali é uma peça chave para a gente poder fazer um bom trabalho nessas escolas”, afirma. Portanto, qualquer dívida com os docentes, seja por salários atrasados ou benefícios não cumpridos, já indica um processo de endividamento da escola, que precisa ser tratado com seriedade.
Implicações Legais do Atraso de Pagamentos
O atraso no pagamento de salários configura uma grave irregularidade trabalhista, passível de multas e outras sanções, conforme o Ministério Público do Trabalho no Rio de Janeiro (MPT-RJ). O promotor do MPT-RJ, Cassio Luis Casagrande, esclarece que o salário deve ser pago até o quinto dia útil subsequente ao mês trabalhado. Ultrapassado esse prazo, a escola já incorre em irregularidade e pode ser autuada pelo Ministério do Trabalho.
Além disso, a negligência persistente pode ter consequências financeiras ainda mais severas para as instituições. “A escola pode ser condenada a pagar os salários em atraso em dobro”, explica Casagrande. Isso ocorre porque o não pagamento dos salários, se não for regularizado judicialmente, acarreta uma multa de 100% sobre o valor devido. Casagrande ressalta, por conseguinte, que professores são trabalhadores como quaisquer outros, sujeitos às mesmas leis e proteções, incluindo o direito a manifestações e greves.
“Independentemente de ser escola ou não, a legislação trabalhista vai ser aplicada”, afirma o promotor, “Não existe nenhum tratamento na lei diferente pelo fato de eles serem professores, inclusive para efeitos de greve. Os professores podem fazer greve nas escolas privadas, não há óbice algum”.
Caminhos para a Solução e Apoio aos Professores
Diante desse cenário desafiador, o Sinpro-Rio orienta os professores afetados a procurarem o sindicato. A entidade se encarregará de ouvir cada caso, compreender a situação e dar o encaminhamento mais adequado. Em um primeiro momento, o sindicato buscará a negociação direta com as escolas. Caso a negociação não produza resultados satisfatórios, o próximo passo será a abertura de um processo judicial e, se necessário, o acionamento do Ministério Público do Trabalho.
Afonso Celso Teixeira esclarece que, se a escola demonstrar interesse em resolver o problema, mesmo sem condições de fazê-lo imediatamente, o sindicato buscará um acordo razoável. A palavra final, entretanto, pertence aos professores, que julgarão se a proposta atende às suas necessidades. A mediação sindical é crucial, pois, em caso de descumprimento do acordo pela escola, “a gente sempre coloca uma multa por descumprimento, pois o contrato é homologado na Justiça”, explica o diretor.
Pelo lado das instituições de ensino, a Fisepe/RJ recomenda que as escolas busquem os sindicatos patronais da sua região. Tais entidades oferecem orientações jurídicas, contábeis e econômicas, capacitando as instituições para uma tomada de decisão mais assertiva. Lucas Machado destaca que as causas do não pagamento são diversas, assim como suas soluções. “Uma coisa é o problema da falta de aluno, isso é um problema, outra coisa é um problema de endividamento por questão tributária, é outra conversa completamente diferente”, exemplifica.
Machado classifica o não pagamento de salários como uma medida extrema. “Se existe uma margem para possibilidade de corte de custo, essa margem tem que ser vista primeiro”, sugere. Ele reitera que deixar de pagar o professor é uma situação limite que exige uma negociação igualmente extrema, com o apoio das assessorias sindicais para melhores decisões.
O procurador do trabalho Cassio Luis Casagrande informa que o MPT-RJ atua principalmente em casos coletivos, como demissões em massa e o não pagamento de encargos em larga escala. Em situações individuais, o órgão não costuma intervir diretamente. No entanto, em casos coletivos, os trabalhadores atingidos podem apresentar uma denúncia no site do Ministério Público do Trabalho, descrevendo os fatos e identificando o empregador. Posteriormente, um inquérito civil será instaurado para investigar a ocorrência. “Será, então, aberto um inquérito civil para investigar se de fato isso está ocorrendo”, finaliza.