Edição Brasília

Rio: “bomba invisível” de operações policiais adoece favelas

Operações policiais, como a recente no Alemão e Penha que deixou 121 mortos, geram uma "bomba invisível" de traumas e doenças que adoece moradores das favelas do Rio.
adoecimento favelas Rio
Foto: Tânia Rêgo/Agência Brasil

As comunidades do Rio de Janeiro enfrentam uma “bomba invisível” de traumas e doenças decorrentes das intensas operações policiais, um fenômeno grave evidenciado por eventos como a recente Operação Contenção. Esta ação, que resultou em ao menos 121 mortes nos complexos do Alemão e da Penha, na Zona Norte, não apenas gerou pânico imediato, mas também desencadeia um ciclo duradouro de sofrimento e adoecimento para os moradores, conforme alertam especialistas em segurança pública e saúde.

Impacto Humano das Operações Policiais

O professor José Claudio Sousa Alves, do departamento de ciências sociais da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), descreve as consequências dessas operações como uma “bomba invisível”. Ele explica que a população local desenvolve uma série de problemas de saúde crônicos, como diabetes, hipertensão, distúrbios emocionais e mentais, insônia e até acidentes vasculares cerebrais (AVCs). Ademais, a perturbação diária inclui o fechamento de comércio, escolas e postos de saúde, com interdições de vias e alterações no transporte público, culminando em cenas de corpos na rua e comunidades em luto profundo.

Nesse contexto, uma pesquisa desenvolvida pelo Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (Cesec) aprofunda a compreensão desse cenário alarmante. O estudo comparou a saúde de indivíduos em favelas com alta exposição a tiroteios envolvendo agentes do Estado com a de moradores de comunidades mais pacíficas. Os resultados são contundentes: o risco de desenvolver depressão e ansiedade é mais que o dobro para aqueles em áreas de conflito. Além disso, a probabilidade de enfrentar insônia aumenta em 73%, e a de hipertensão arterial, em 42%. Um terço desses moradores ainda relatou sintomas agudos de estresse durante os confrontos, como sudorese, falta de sono, tremores e falta de ar.

Relatos da Comunidade e a Realidade da Periferia

A indignação e o sofrimento da população são palpáveis. Raimunda de Jesus, dirigente sindical, participou ativamente de uma manifestação contra a Operação Contenção, ocorrida na sexta-feira (31) no Complexo da Penha. Ela argumentou veementemente que o tratamento dispensado às periferias não se equipara ao que ocorre nas áreas mais abastadas da Zona Sul, mesmo onde criminosos também atuam. “Nós, que moramos na periferia, somos discriminados”, afirmou Raimunda, enfatizando que o Estado deveria ser um protetor de seu povo, e não um adversário.

Similarmente, Liliane Santos Rodrigues, residente do Complexo do Alemão, compareceu ao ato público, vivenciando uma dor profunda e recente. Seis meses antes, seu filho, Gabriel Santos Vieira, de apenas 17 anos, foi baleado cinco vezes durante uma perseguição policial enquanto se dirigia ao trabalho em uma motocicleta de aplicativo. Ela expressou sua empatia pelas outras mães afetadas: “Estou sentindo a dor dessas mães. Foi um baque muito grande ver que um rapaz foi morto no mesmo lugar em que o meu filho morreu. Tem três dias que eu não sei o que é dormir direito”, desabafou Liliane, reverberando a tragédia que se repete.

O Complexo Cenário dos Territórios do Crime

De acordo com a Secretaria de Segurança do Rio de Janeiro, os complexos do Alemão e da Penha são considerados bases estratégicas do Comando Vermelho, abrigando lideranças de diversas regiões. Carolina Grillo, coordenadora do Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos da Universidade Federal Fluminense (Geni/UFF), destaca que muitos chefes do tráfico que ainda estão em liberdade — visto que a maioria já se encontra presa, operando de dentro das penitenciárias — costumam residir nessas áreas. Estes complexos oferecem maior resistência armada, proporcionando mais tempo para se esconder ou fugir diante de operações policiais. Contudo, esses locais são muito mais do que redutos criminosos, sendo o lar de mais de 110 mil pessoas, que sofrem diretamente as consequências das incursões policiais. A pesquisadora ressalta que, mesmo com prisões e apreensões, as operações raramente desmantelam a estrutura do Comando Vermelho, mas impactam severamente a população local, deixando traumas irreparáveis em famílias e moradores.

Dinâmica e Expansão do Comando Vermelho

O Comando Vermelho, uma das maiores organizações criminosas do país, originou-se no sistema prisional do Rio de Janeiro no final dos anos 1970, em um período marcado por torturas e condições desumanas no presídio do Caldeirão do Diabo, em Ilha Grande. José Claudio Sousa Alves explica que a facção desenvolveu uma capacidade organizativa robusta, migrando do roubo a bancos para o lucrativo tráfico de drogas, e desde então tem expandido sua influência. Atualmente, o Comando Vermelho está presente em 24 estados e no Distrito Federal, mantendo conexões internacionais para o comércio de entorpecentes e outras atividades ilícitas, conforme uma nota técnica do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

Além disso, uma pesquisa conjunta do Geni e do Instituto Fogo Cruzado revelou que o Comando Vermelho foi a única facção a expandir seu controle territorial no Grande Rio entre 2022 e 2023, com um aumento de 8,4%. Atualmente, a organização domina 51,9% das áreas sob controle criminoso na região, superando as milícias, que viram suas áreas reduzirem em 19,3%, passando a controlar 38,9% dos territórios. O estudo detalha que o Comando Vermelho retomou 242 km² que haviam sido perdidos para as milícias em 2021. As maiores expansões ocorreram na Baixada Fluminense e no Leste Metropolitano, enquanto as milícias sofreram maiores perdas na Baixada e na Zona Oeste. Carolina Grillo observa que essa prosperidade do crime organizado em territórios vulneráveis se deve, em grande parte, à “oferta quase inesgotável de mão de obra” jovem, em função das precárias oportunidades e das terríveis desigualdades sociais estruturais no Brasil. Em tempos mais recentes, a forma de atuação do Comando Vermelho também se transformou, expandindo suas fontes de lucro além do tráfico de drogas, influenciado pelo modus operandi das milícias, que exploram os moradores, cobrando por serviços essenciais. Embora a Operação Contenção tenha apreendido toneladas de drogas, o próprio secretário de Polícia Civil, Felipe Curi, reconheceu que a venda de entorpecentes representa apenas 10% a 15% do faturamento das facções. O território em si tornou-se a principal fonte de receita, através da exploração de serviços como internet, gás, energia elétrica, água, construções irregulares e extorsão de comerciantes e moradores.

Estratégias para um Combate Eficaz ao Crime Organizado

Tanto José Claudio Sousa Alves quanto Carolina Grillo defendem que as operações policiais violentas não são a maneira mais eficaz de combater o crime organizado. A manutenção do domínio territorial das facções, mesmo após anos de operações, é uma prova, segundo eles. Existem, por outro lado, elos estratégicos cujo combate pode ser feito de forma não violenta. Carolina Grillo cita como exemplo a Operação Carbono Oculto, que desmantelou estruturas financeiras do Primeiro Comando da Capital (PCC) sem disparar um único tiro. Outra iniciativa exemplificada pela pesquisadora foi a operação da Polícia Federal no Rio de Janeiro, que desarticulou uma organização especializada na produção e comércio ilegal de armas de fogo de uso restrito, gerando um efeito de desarmamento muito maior do que as ações focadas no confronto direto.

Essas abordagens alternativas, ademais, evitam o impacto gigantesco e irreparável sobre a sociedade, que inclui crianças traumatizadas e famílias impedidas de trabalhar ou levar seus filhos à escola, sem que haja um resultado positivo real na libertação dessas comunidades do jugo dos grupos armados. José Claudio Sousa Alves complementa, questionando: “Para onde vai essa grana toda do tráfico? Quem tá operando? É o pé de chinelo lá do Alemão? É o pobre vendedor no varejo? Para onde vai essa grana toda? Tá com ele mesmo? Não tá. É óbvio que não. Você tem estruturas muito mais amplas. Você tem estrutura internacional, hoje, do tráfico. Há condições de investigar. A Carbono Oculto nos mostra que isso é possível.”

Uma linha de atuação fundamental, portanto, é a oferta de oportunidades às populações de favelas e áreas vulneráveis, especialmente aos jovens, para que não sejam atraídos pelo crime organizado. O professor lamenta a ausência de propostas, tanto do governo atual quanto dos anteriores, para essa massa de pessoas que vivem sem acesso ao mercado de trabalho e em crescente precarização. Nesse sentido, Carolina Grillo destaca a importância de iniciativas como o Pronasci Juventude, do Ministério da Justiça e Segurança Pública, que busca prevenir a criminalidade ligada ao tráfico de drogas, oferecendo apoio a estudos, capacitação e inserção profissional para os jovens.