Quase 60% dos casos de demência diagnosticados no Brasil possuem fatores de risco modificáveis, o que sugere um alto potencial de prevenção. Uma pesquisa pioneira, liderada pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), revelou que a baixa escolaridade durante a juventude, a perda de capacidade visual não corrigida e a depressão despontam como as três principais condições que podem ser evitadas ou atenuadas, impactando significativamente a incidência da doença no país.
A Ampla Dimensão dos Fatores Preveníveis
O estudo da USP, que analisou dados robustos para traçar este panorama, identificou que um percentual alarmante, precisamente 59,5%, dos casos de demência no Brasil está associado a fatores de risco que podem ser alterados. Este índice, aliás, supera a média global, que se posiciona em 45%. Por outro lado, o envelhecimento e a predisposição genética, embora influenciem a doença, são considerados fatores imutáveis.
Em outras palavras, a pesquisa aponta para uma janela de oportunidade substancial para a saúde pública e ações individuais. De acordo com o Relatório Nacional sobre a Demência, do Ministério da Saúde, a prevalência da doença entre a população idosa brasileira varia entre 12,5% e 17,5%, um número que tende a crescer rapidamente devido ao envelhecimento populacional. Portanto, estratégias preventivas tornam-se cada vez mais urgentes e pertinentes para o cenário nacional.
Os pesquisadores, em artigo divulgado na renomada sessão Regional Health Americas, da revista científica The Lancet, enfatizam a importância de políticas públicas focadas em acesso educacional desde a infância, cuidados oftalmológicos acessíveis e aprimoramento dos serviços de saúde mental. Tais medidas são consideradas cruciais, principalmente para comunidades em situação de vulnerabilidade, visando reduzir de forma equitativa e substancial a prevalência e a incidência da demência.
Principais Causas Modificáveis e Suas Contribuições
A investigação estimou a contribuição de 14 fatores de risco modificáveis para a demência. Para tanto, os pesquisadores utilizaram dados do Estudo Longitudinal da Saúde dos Idosos Brasileiros (ELSI-Brasil), uma iniciativa coordenada pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz).
Dentre os fatores modificáveis, a baixa escolaridade na fase inicial da vida apresentou a maior porcentagem de associação, impactando cerca de 9,5% dos casos de demência. Em seguida, aparece a perda visual na velhice, com uma contribuição de 9,2%, e a depressão na meia-idade, associada a 6,3% dos casos.
Adicionalmente, o estudo listou outros onze fatores modificáveis que elevam o risco de demência. Estes incluem: isolamento social, exposição à poluição do ar, traumatismo cranioencefálico, hipertensão arterial, diabetes, obesidade, sedentarismo, tabagismo, consumo excessivo de álcool, perda auditiva e colesterol elevado. Observa-se que a proporção brasileira foi maior do que a média mundial em dez desses fatores, reforçando a ligação com desigualdades socioeconômicas e o acesso precário à saúde e educação.
Compreendendo os Mecanismos de Prevenção
A influência da educação precoce, por exemplo, está intrinsecamente ligada ao conceito de reserva cognitiva. Durante o processo de aprendizado, o cérebro forma novas conexões neurais, fortalecendo sua capacidade de compensar futuros danos. Similarmente, estímulos cognitivos explicam por que a perda visual tem um impacto tão significativo.
Conforme explica a professora de Geriatria da Faculdade de Medicina da USP e coautora da pesquisa, Cláudia Suemoto, nosso cérebro integra informações sensoriais – como visão e audição – com o conhecimento prévio para elaborar respostas. Portanto, a perda visual interrompe uma parcela importante da estimulação cerebral, dificultando a melhoria da memória e o estímulo neuronal.
A depressão, por sua vez, age por mecanismos análogos. A falta de motivação inerente ao quadro depressivo inibe a busca por novas atividades e desafios que poderiam estimular o cérebro. Uma segunda hipótese, de natureza mais biológica, sugere que o desequilíbrio de neurotransmissores característico da depressão pode, a longo prazo, levar à perda neural. Ambas as explicações, provavelmente complementares, contribuem para o risco de demência.
A Urgência de Políticas Públicas Preventivas
Os resultados da pesquisa ressaltam, em um primeiro momento, que a contribuição da baixa escolaridade e da perda visual não tratada é significativamente maior em regiões mais pobres do Brasil e entre a população negra. Isso demonstra, claramente, como as desigualdades socioeconômicas e a inadequação do acesso à educação e aos cuidados de saúde mental podem exacerbar o risco de demência.
A professora Cláudia Suemoto enfatiza que, embora existam medidas de prevenção que podem ser tomadas individualmente, o foco principal deve recair sobre a formulação de políticas públicas. A rápida taxa de envelhecimento da população brasileira torna a prevenção da demência um imperativo, visto que o aumento da idade é o principal fator de risco não modificável. Nenhuma nação conseguirá lidar eficazmente com uma população envelhecida que apresente alta prevalência da doença sem robustas estratégias de prevenção.
Por fim, a geriatra alerta que, apesar de a demência ser frequentemente associada à velhice (sendo mais comum após os 65 anos), a prevenção é um processo contínuo que deve iniciar cedo e estender-se por todas as fases da vida. Para tanto, os gestores públicos precisam considerar esses fatores – como a educação deficitária, a depressão e os riscos cardiovasculares – ao planejar intervenções e programas de saúde que eduquem e apoiem a população. “Ao aumentar a escolaridade, tratar a depressão, diagnosticar e tratar pressão alta, diabetes, colesterol, perda visual, perda auditiva, também se previne a demência”, conclui a professora da USP, sublinhando a importância de uma abordagem multifacetada e integrada.