O Brasil enfrenta um risco crescente de se tornar um narcoestado, uma realidade impulsionada pela desintegração entre as forças de segurança e pela intensa polarização política. Essa é a preocupante avaliação de Lincoln Gakiya, renomado promotor do estado de São Paulo, amplamente conhecido por sua atuação combativa contra o Primeiro Comando da Capital (PCC). Gakiya alertou os senadores na Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) sobre o Crime Organizado que as facções criminosas estão cada vez mais infiltradas na economia formal do país, representando um desafio multifacetado para as autoridades.
Desafios na Coordenação de Segurança e Combate ao Crime Organizado
De acordo com Gakiya, um dos obstáculos mais significativos para deter o avanço do narcotráfico organizado no Brasil reside na alarmante falta de integração entre as diversas forças de segurança. Ele lamentou que, em mais de três décadas de carreira como promotor, não tenha testemunhado uma colaboração coordenada e sinérgica entre a polícia e o Ministério Público. Pelo contrário, o cenário atual é marcado por lamentáveis disputas institucionais que minam os esforços conjuntos contra o crime.
Posteriormente, o promotor compareceu à CPI do Senado na terça-feira (25), uma comissão estabelecida após a repercussão de uma operação no Rio de Janeiro que resultou na morte de 122 pessoas, incluindo cinco policiais. Gakiya, que vive sob ameaça de morte do PCC, reforçou sua preocupação com a possibilidade de o Brasil se transformar em um narcoestado. Ele explicou que as facções já se encontram profundamente enraizadas na economia legal, utilizando plataformas digitais como fintechs, sites de apostas online (bets) e criptomoedas para lavagem de dinheiro e ocultação de bens, um setor ainda carente de regulamentação eficaz.
Para o promotor, a simples alteração legislativa, como o endurecimento de penas, não é uma solução suficiente. Gakiya criticou aspectos do Projeto de Lei (PL) Antifacção, já aprovado na Câmara, argumentando que o texto atual falha em diferenciar, com a precisão necessária, as lideranças das organizações criminosas dos seus membros de menor escalão, os chamados “soldados”. Em sua visão, a verdadeira lacuna não está na falta de leis, embora a legislação sempre possa ser aprimorada; o problema mais grave é, na verdade, a absoluta falta de coordenação e cooperação interna entre os órgãos estatais.
Polarização Política e suas Consequências na Segurança Pública
Adicionalmente, Lincoln Gakiya enfatizou que a polarização política, que tem permeado o cenário nacional, prejudica diretamente a integração das forças de segurança. Ele observou que a desarmonia entre governos de diferentes espectros políticos acaba por minar a capacidade de atuação conjunta. Por exemplo, a bem-sucedida Operação Carbono Oculto, conduzida pela Polícia Federal (PF), que desmantelou esquemas de lavagem de dinheiro do PCC em São Paulo, foi, segundo ele, mais fruto da iniciativa individual de servidores do que de uma estruturada colaboração institucional entre as chefias.
Nesse sentido, o promotor expressou grande preocupação com a dificuldade de articulação entre forças federais e estaduais quando os governos são politicamente opostos. Para mitigar essa questão, Gakiya sugeriu a criação de uma Autoridade Nacional para combater o crime organizado. Tal entidade, composta por representantes de todas as polícias e órgãos estatais, garantiria a continuidade das políticas de segurança, superando disputas institucionais e corporativistas. Ele ponderou que a Polícia Federal não deveria ser a única coordenadora dessas forças-tarefas, pois isso poderia gerar conflitos com os estados. Vale ressaltar que o governo federal encaminhou ao Congresso a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) da Segurança Pública, visando aprofundar essa integração, mas a iniciativa enfrenta resistência na Câmara.
Ameaça Concreta de um Narcoestado no Brasil
Durante a CPI, Gakiya reiterou que o Brasil está avançando rapidamente para se tornar um narcoestado, principalmente devido ao crescimento exponencial de grupos como o PCC, que se estabeleceram profundamente na economia formal. Ele definiu narcoestado como aquele que se torna dependente do tráfico de drogas. Contudo, apesar do cenário preocupante, Gakiya afirmou que o país possui instituições capazes de fazer frente a essa ameaça, desde que as disputas internas, corporativas e políticas não atrapalhem o trabalho. Ele frisou que o PCC está presente em todas as unidades da federação e em pelo menos 28 países, com sua receita anual saltando de aproximadamente R$ 10 milhões em 2010 para cerca de R$ 10 bilhões, conforme as investigações.
Para ilustrar a dimensão dessa infiltração, o promotor de SP citou o caso de empresas de ônibus que operavam na capital paulista sob controle do PCC. Essas companhias transportavam mais de 25 milhões de passageiros por mês, e seus acionistas e diretores possuíam laços diretos com a facção, alguns inclusive com difusão vermelha da Interpol. Era, como Gakiya descreveu, um “escárnio”, visto que esses contratos foram prorrogados emergencialmente e geravam mais de R$ 1 bilhão por ano em subvenções da prefeitura. Além disso, o crime organizado tem se infiltrado no Estado através de contratos, especialmente em prefeituras, muitas vezes após financiar campanhas eleitorais. O PCC busca dominar parte do poder público para garantir negócios e expandir suas operações.
Infiltração no Sistema Financeiro e o Papel das Fintechs e Bets
A entrada das facções na economia formal é uma das maiores preocupações de Lincoln Gakiya, especialmente sua infiltração no sistema financeiro. Isso ocorre por meio de fintechs, aquisição de criptomoedas e, de forma notável, pelos jogos de apostas online. Segundo o promotor, muitas dessas empresas de apostas estão sendo instrumentalizadas pelo crime organizado para lavagem de dinheiro. Esse processo frequentemente envolve contratos com influenciadores digitais, que acumulam fortunas em poucos anos, mas cujos laços com a lavagem de dinheiro, advertiu Gakiya, virão à tona.
Por outro lado, a CPI das Bets no Senado, cujo relatório foi rejeitado em junho, demonstra a complexidade do tema, visto que não houve indiciamento de 16 pessoas, incluindo influenciadores digitais. O promotor ainda apontou que a escassa regulamentação das fintechs no Brasil tem facilitado a lavagem de dinheiro pelas facções. Antes da Operação Carbono Oculto, por exemplo, o Banco Central (BC) não fiscalizava essas empresas, e o Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) não tinha acesso às suas informações, evidenciando uma deficiência significativa na fiscalização e regulamentação.
Debate sobre a Legislação Antifacção e a Necessidade de Aprimoramento
Em relação ao Projeto de Lei Antifacção, já aprovado pela Câmara dos Deputados, o promotor Lincoln Gakiya salientou que o texto carece de clareza na distinção entre líderes e os demais membros das facções, os chamados “soldados”. Ele argumentou que é fundamental classificar melhor esses diferentes níveis dentro das organizações criminosas. Gakiya também ponderou que o PL deveria tratar de forma distinta as organizações menores das mais estruturadas, as quais ele descreve como possuindo características de “máfia”. Para essas organizações mafiosas, ele defende a aplicação de ferramentas processuais mais intrusivas, essenciais para casos de extrema gravidade, citando a Itália como exemplo.
Finalmente, o promotor criticou uma alteração proposta pelo relator Guilherme Derrite (PP-SP), que retirou os homicídios praticados por membros de facções da competência do Tribunal do Júri Popular. Embora compreenda a justificativa de que jurados podem sofrer pressões do crime organizado, Gakiya ressaltou que os juízes também estão sujeitos a essas intimidações. Portanto, o debate sobre a legislação antifacção precisa considerar todas as nuances e garantir que as ferramentas jurídicas sejam eficazes e adequadas à complexidade do cenário criminal brasileiro.



