Um projeto inovador, fruto da parceria entre a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) Alimentos e Territórios Alagoas e o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), está impulsionando a cultura alimentar e o turismo sustentável em comunidades rurais do semiárido nordestino. Esta iniciativa, avaliada como um “divisor de águas” e “transformadora” pelas participantes, foca no protagonismo feminino, gerando renda e valorizando as tradições locais na região.
Transformação e Empreendedorismo Feminino no Semiárido
Aos 41 anos, Anatália Costa Neto, conhecida como Nat, exemplifica a capacidade de transformação que o projeto “Paisagens Alimentares” proporciona. Desde a infância, Nat trabalhou arduamente, ajudando sua mãe na coleta de aratu e ostras. Atualmente, ela é uma das 14 mulheres que integram a Associação das Mulheres Empoderadas de Terra Caída, em Indiaroba, Sergipe. Ao passo que a comunidade já produzia artesanato, o projeto da Embrapa introduziu o turismo de base comunitária, criando uma nova e vital fonte de renda para todos.
Recentemente, Nat recebeu o prêmio Mulher de Negócio na categoria Microempreendedora Individual, reconhecimento por suas diversas ações na comunidade. Entre elas, destaca-se a criação do hambúrguer de carne de aratu, um caranguejo típico da região. Embora o produto já existisse, o trabalho da Embrapa agregou valor, tornando-o significativamente mais atrativo. “O projeto me fez vender mais, saber como calcular o preço, que eu não tinha noção. Foi através deles que eu agreguei valor ao meu produto”, relata Nat à Agência Brasil, enfatizando que turistas agora levam o hambúrguer para consumo próprio ou para preparo em casa.
Além disso, a orientação técnica para a valorização de produtos beneficiou outros itens locais. Biscoitos de capim santo e batata-doce, geleias, cocadas, compotas, bolos e pudins feitos de mangaba, e mariscos, todos se tornaram um sucesso de vendas. Nat complementa: “Assim, a gente vai criando produtos para poder trazer mais fontes de renda para a nossa vida. São muitas coisas, é só a gente ter a ideia que vai fluindo na mente. Foi através da Embrapa que a gente foi conhecendo mais.”
Visibilidade e Fortalecimento da Agricultura Familiar
Em outra frente, Ana Paula Ferreira, de 38 anos, coordenadora de um grupo de sete mulheres no assentamento Olho D’Água do Casado, em Palmeira dos Índios, Alagoas, também testemunha as profundas mudanças trazidas pelo projeto da Embrapa. Segundo Ana Paula, a iniciativa promoveu a economia local e, principalmente, um sentido de pertencimento e liberdade. Ela explica à Agência Brasil que o projeto fortalece a identidade do território e o conceito de viver da agricultura familiar, expondo a beleza do cotidiano dos agricultores para visitantes, que colocam as “mãos na terra para produzir o alimento saudável”.
O assentamento, situado em uma área de reforma agrária, beneficia-se da proximidade com o Pôr do Sol dos Cânions Dourados e os Cânions do São Francisco, o que potencializa a exploração turística. Ana Paula ressalta a importância de dar visibilidade ao trabalho da agricultura familiar. “No conceito de mostrar para o mundo o que estamos fazendo e as pessoas tirem essa venda dos olhos”, afirma. Assim, quando um visitante interage com agricultores e a comunidade, valoriza-se quem realmente produz o alimento.
Adicionalmente, um dos grandes avanços foi o engajamento dos jovens, que antes se afastavam do trabalho rural. Conforme Ana Paula, a presença de universidades e institutos, aliada às novas oportunidades, significa que os jovens não precisam mais ir tão longe em busca de seus sonhos. A parceria com a Embrapa e o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) expandiu as atividades e a geração de renda na agricultura, com um novo foco na preservação e no aproveitamento da biodiversidade da caatinga. “Muitas pessoas têm o conceito de que a caatinga está morta no período de seca do verão, mas com os conhecimentos da Embrapa a gente viu que pode aproveitar a caatinga o ano todo e a preservação aumentou, ainda mais, pelas pessoas estarem cultivando as suas árvores nativas”, detalha Ana Paula.
Origem e Seleção Estratégica dos Territórios
O supervisor do setor de inovação e tecnologia da Embrapa Alimentos e Territórios Alagoas, Aluísio Goulart Silva, explica que o projeto “Paisagens Alimentares” surgiu de uma articulação com o BID em 2018. As negociações avançaram e, quando a Embrapa Alimentos e Territórios Alagoas iniciou suas operações, a proposta se alinhou perfeitamente à missão da nova unidade criada pela empresa. Para mais informações, consulte: Embrapa inicia construção de nova unidade de pesquisa em Alagoas.
O desenvolvimento do projeto levou três anos. Inicialmente, realizou-se uma pesquisa exploratória nos territórios, considerando dados de instituições como universidades, secretarias estaduais de turismo e agricultura, e o Sebrae em Sergipe, Alagoas e Pernambuco. Posteriormente, um comitê técnico gestor estabeleceu 20 critérios para avaliar as comunidades, que foram visitadas pelos técnicos da Embrapa. Dessa forma, identificaram-se cinco territórios e seis comunidades para participar.
Em Alagoas, selecionaram-se duas comunidades. A primeira foi a Cooperativa Mista de Produção e Comercialização Camponesa (Coopcam) de Palmeira dos Índios, na região da Serra da Barriga. Goulart Silva destaca: “Uma região muito interessante que tem um histórico grande relacionado à cultura indígena, o próprio nome da cidade representa isso e essa cooperativa já trabalhava com um fermentado de jabuticaba há 40 anos.” Além disso, a intenção da comunidade em desenvolver o turismo rural contribuiu para a escolha. A segunda comunidade em Alagoas foi a do município de Olho D’Água do Casado, abrangendo cidades vizinhas como Piranhas e Delmiro Gouveia. Nesse local, as ações concentraram-se no Assentamento Nova Esperança, que explora o potencial dos sítios arqueológicos e a pesca artesanal no Rio São Francisco, com famílias dedicadas à produção agroecológica.
Em Sergipe, outras duas comunidades foram escolhidas. Uma delas em Indiaroba, município na divisa com a Bahia, próximo a Mangue Seco. Esta comunidade é composta principalmente por catadoras de mangaba e marisqueiras, que dependem tanto dos frutos da restinga (mangaba, murici, araçá) quanto da pesca artesanal. De fato, elas já colaboravam com outros projetos da Embrapa focados em recursos genéticos. Por outro lado, a região metropolitana de Aracaju elegeu São Cristóvão, uma das cidades mais antigas do Brasil, conhecida por sua arquitetura colonial e, sobretudo, pelas “beijuzeiras”. Essas mulheres produzem o beiju, um bolo tradicional que representa a miscigenação brasileira, utilizando coco, mandioca e açúcar. O supervisor da Embrapa salienta que os doces conventuais, como a queijadinha (que usa coco em vez de queijo na versão brasileira), são um patrimônio cultural imaterial da cidade, e o artesanato local dialoga intrinsecamente com essa cultura alimentar.
Finalmente, em Pernambuco, dois grupos compartilham o território do Manguezal, na Área de Proteção Ambiental de Guadalupe, próximo à Praia de Carneiros. De um lado, está a Associação das Marisqueiras de Sirinhaém (Amas), do povoado de Aver-o-Mar. Do outro, no município de Rio Formoso, encontra-se a Associação Quilombola Engenho Siqueira. Goulart Silva descreve essa composição como “muito interessante”, pois ambos compartilham os recursos naturais do manguezal. Enquanto as marisqueiras contam sua história pelos frutos do mangue, os quilombolas, além da pesca artesanal, praticam uma agricultura agroecológica autossustentável.
O Protagonismo Feminino e a Conexão Cultural
Uma característica notável e recorrente em todas as comunidades envolvidas é o forte protagonismo feminino. Mulheres rurais lideram associações, coordenam trilhas turísticas, organizam vivências e estimulam a produção artesanal e agroecológica. O supervisor da Embrapa pontua que, coincidentemente, todas as lideranças são femininas, tornando-o “um projeto praticamente trabalhando com mulheres rurais”.
Ao longo de três anos, os técnicos da Embrapa mantiveram contato direto com os moradores das comunidades nos três estados, cumprindo a missão de valorizar a biodiversidade brasileira. Em suma, o objetivo principal é promover o desenvolvimento territorial por meio de estratégias de valorização diversas, conectando os alimentos à cultura alimentar local e ao turismo de base comunitária. Por exemplo, na comunidade quilombola, há um prato chamado funje, uma papa de farinha de mandioca, água e sal, servida com caldos. A curiosidade é que este prato, com o mesmo nome, é originário de Angola, sugerindo uma forte conexão cultural com a Nação Bantu. “A cultura alimentar daquele povo nos certifica a origem deles”, comenta Goulart Silva, ressaltando o valor da pesquisa em desvendar essas ligações históricas.