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PNAE: Referência global da ONU que tira Brasil do Mapa da Fome

Referência global da ONU, o PNAE completa 70 anos tirando o Brasil do Mapa da Fome e garantindo refeições a 40 milhões de estudantes, mesmo com desafios orçamentários e de infraestrutura.
PNAE alimentação escolar
Foto: Fernando Luiz Venâncio/Arquivo pessoal

O Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), um verdadeiro marco global reconhecido pela Organização das Nações Unidas (ONU), celebra sete décadas de existência. Com efeito, este projeto essencial tem desempenhado um papel crucial ao retirar o Brasil do Mapa da Fome, garantindo diariamente refeições nutritivas para mais de 40 milhões de estudantes em todo o país, mesmo diante de persistentes desafios orçamentários e de infraestrutura. A sua relevância, portanto, transcende as fronteiras nacionais, servindo como modelo para diversas nações.

O PNAE como Referência Global

Daniel Balaban, diretor do Programa Mundial de Alimentos da ONU no Brasil, observa que o país, muitas vezes, reluta em reconhecer suas próprias conquistas. No entanto, ele destaca que as Nações Unidas consistentemente apontam o PNAE como um dos mais extensos e eficientes programas de alimentação escolar do mundo. Embora oficialmente complete 70 anos, Balaban ressalta que o PNAE ganhou um novo patamar a partir de 2009. Naquele ano, uma legislação fundamental foi promulgada, definindo critérios rigorosos para a alimentação escolar. Consequentemente, refeições completas passaram a substituir lanches industrializados e biscoitos açucarados, transformando o conceito de merenda em uma política nutricional robusta.

Nesse mesmo período de transformação, em 2009, Fernando Luiz Venâncio, então metalúrgico, teve uma mudança significativa em sua trajetória profissional. Após substituir um colega na cozinha da empresa durante as férias, ele descobriu sua paixão pela culinária. Desde então, Fernando não se afastou mais das panelas.

Da Cozinha Escolar à Nutrição Balanceada

Atualmente, Fernando lidera a equipe de cozinheiros responsável por preparar três refeições diárias para mais de 400 alunos da Escola Johnson, uma instituição de ensino médio em tempo integral situada em Fortaleza, Ceará. O cardápio inclui pratos típicos e nutritivos, como baião de dois, carne picadinha, farofa de ovo e o popular creme de galinha.

Ainda assim, Fernando enfatiza que o creme de galinha, preparado com peito de frango desfiado e caldo de legumes, sem a adição de ingredientes como creme de leite ou queijo, é um item intocável no menu. Essa restrição, por certo, não é arbitrária. A alimentação deve ser inclusiva, atendendo a todos os estudantes, incluindo aqueles com necessidades dietéticas específicas. Ele explica a importância de preparar uma única refeição que todos possam desfrutar e digerir bem, sem causar desconforto.

Por outro lado, o cardápio não é definido pelos cozinheiros. Fernando esclarece que as nutricionistas são as responsáveis por elaborá-lo, cabendo à equipe da cozinha executá-lo. A presença de nutricionistas nas escolas, aliás, é uma das exigências da lei de 2009. Essa legislação estabelece que os cardápios devem atender às necessidades nutricionais dos alunos, considerar a cultura alimentar local, priorizar alimentos frescos preparados na própria escola, limitar o uso de ultraprocessados a no máximo 15% e garantir que pelo menos 30% dos alimentos venham da agricultura familiar.

Fortalecendo a Agricultura Familiar

Marli Oliveira, uma agricultora familiar de Ocara, Ceará, exemplifica o impacto direto do PNAE. Ela destina 30% de sua produção, que inclui ovos, mel e carnes de galinhas caipiras, porcos e ovinos, para a alimentação escolar. Os demais produtos são comercializados em vendinhas locais. A venda garantida para as escolas, segundo Marli, representa uma diferença substancial na vida dos agricultores, especialmente em municípios menores, onde a agricultura é a principal fonte de renda.

Nesse sentido, um estudo do Observatório da Alimentação Escolar (OAE) quantificou esse impacto. A pesquisa revelou que para cada R$ 1 investido pelo PNAE na agricultura e pecuária familiar, o Produto Interno Bruto (PIB) nacional cresce R$ 1,52 na agricultura e R$ 1,66 na pecuária, evidenciando um retorno econômico significativo. Ademais, uma alteração legislativa aprovada pelo Congresso Nacional, aguardando sanção presidencial, prevê que a participação da agricultura familiar no PNAE possa atingir no mínimo 45% a partir de 2026. Luzia Márcia, assentada da reforma agrária em Chorozinho, Ceará, que produz castanha de caju, comemorou a potencial mudança. Embora sua cooperativa ainda não forneça para o PNAE devido a questões de pontuação em processos seletivos, ela vê no aumento da demanda uma oportunidade vital. O PNAE, para ela, é crucial para resolver um dos maiores desafios dos agricultores: o escoamento da produção.

Reconhecimento Internacional e Desafios Contínuos

Entre os dias 18 e 19 de setembro, o Brasil sediou a 2ª Cúpula da Coalizão Global pela Alimentação Escolar, evento que reuniu representantes de mais de 90 países. Os participantes se comprometeram a assegurar alimentação de qualidade para mais de 700 milhões de estudantes até 2030. Durante a cúpula, Isabel Abreu, Ministra da Educação de São Tomé e Príncipe, destacou a cooperação com o Brasil. Ela mencionou a formação online de nutricionistas locais com o apoio de profissionais brasileiros, além da orientação de uma nutricionista brasileira que permaneceu em seu país por três anos. São Tomé e Príncipe, por conseguinte, também adota o princípio de incluir alimentos locais nas refeições escolares, seguindo o modelo brasileiro.

Atualmente, o PNAE atende 40 milhões de estudantes diariamente, abrangendo desde a creche até a Educação de Jovens e Adultos (EJA). Daniel Balaban reitera a importância do programa, afirmando que “o PNAE auxiliou o Brasil a sair do Mapa da Fome da ONU”. Ele ainda salienta que a ausência de alimentação escolar colocaria grande parte desses 40 milhões de alunos em situação de insegurança alimentar, visto que, para muitos, a refeição na escola é a principal do dia.

Os Obstáculos Diários do Programa

Apesar dos inquestionáveis elogios e do reconhecimento, a execução cotidiana do PNAE enfrenta uma série de desafios complexos. Por exemplo, o orçamento do programa para 2025 foi de R$ 5,5 bilhões. O repasse diário por estudante varia de R$ 0,41 para alunos do EJA a R$ 1,37 para creches e estudantes em tempo integral. No entanto, antes do último reajuste em 2023, esses valores permaneceram congelados por cinco anos, comprometendo o poder de compra. Além do repasse federal, estados e municípios são responsáveis por complementar os recursos, mas essa prática nem sempre ocorre. Um levantamento do Observatório da Alimentação Escolar (OAE) aponta que mais de 30% dos municípios das regiões Norte e Nordeste do Brasil falham em realizar essa complementação.

Em outro estudo, o OAE consultou nutricionistas de todo o país sobre a capacidade de cumprir as exigências nutricionais do PNAE. Cerca de 47% dos profissionais relataram dificuldades, citando problemas como a falta de infraestrutura adequada para o preparo das refeições, a resistência de famílias e profissionais da educação, a inflação dos alimentos, a insuficiência orçamentária e a escassez de nutricionistas e cozinheiros. Todas essas questões, portanto, afetam diretamente a qualidade e a abrangência do programa.

A Visão Pedagógica da Alimentação Escolar

Albaneide Peixinho, presidente da Associação Brasileira de Nutrição, atribui esses problemas a uma compreensão equivocada da alimentação escolar por parte de muitos gestores públicos. Ela lamenta que “a maioria dos gestores ainda vê o programa como ‘merenda'”, considerando-o apenas um lanche rápido do ponto de vista nutricional e um mero auxílio assistencialista. Essa mentalidade, segundo ela, deturpa a verdadeira proposta do PNAE, fazendo com que entendam como um grande favor o que é um direito.

Albaneide, que coordenou o PNAE por 13 anos e integrou a equipe que formulou a lei de 2009, busca erradicar essa visão antiquada da “merenda”. Ela ressalta que o PNAE é, acima de tudo, “um programa pedagógico de promoção à saúde”. A formação de hábitos alimentares saudáveis é tão vital quanto a oferta das refeições em si, contribuindo diretamente para a melhoria do ensino-aprendizagem. Em conclusão, Albaneide afirma que, apesar do PNAE ser uma referência mundial, consagrada inclusive na Constituição Federal, “ainda há muito a avançar” para que todo o seu potencial seja plenamente explorado.