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PNAE, 70 anos: Brasil é referência global em alimentação escolar e agricultura familiar

Com 70 anos, o PNAE é modelo global em alimentação escolar, atendendo 40 milhões de alunos da rede pública e impulsionando a agricultura familiar no Brasil.
PNAE alimentação escolar global
Foto: Sergio Amaral/Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social

O Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) celebra 70 anos como um modelo de sucesso global, transformando a alimentação de mais de 40 milhões de estudantes da rede pública brasileira. Mais do que garantir refeições nutritivas, a iniciativa impulsiona a agricultura familiar e se consolida como uma ferramenta crucial para o desenvolvimento social e econômico do país.

O PNAE: Um Pilar Fundamental da Alimentação Brasileira

Desde 1988, a Constituição Federal assegura o direito à alimentação a todos os cidadãos, um princípio que alicerça o PNAE. Conforme Daniel Henrique Baldoni, professor do Instituto de Saúde e Sociedade da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e coordenador de Segurança Alimentar e Nutricional do programa, essa base legal é fundamental. Ademais, o Fórum Mundial de Alimentos da ONU reconheceu a política como um dos instrumentos-chave que contribuíram para a retirada do Brasil do Mapa da Fome em julho deste ano.

Administrado pelo Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), uma autarquia vinculada ao Ministério da Educação (MEC), o PNAE destina recursos financeiros a estados e municípios. Estes, por sua vez, complementam o orçamento com verbas locais, o que garante a sustentabilidade e a adaptabilidade do programa. Além disso, o PNAE estabelece diretrizes rigorosas para assegurar uma alimentação nutricionalmente equilibrada e, simultaneamente, fortalecer as economias regionais, pois prioriza a aquisição de alimentos diretamente da agricultura familiar.

Da Origem à Reconhecimento Global

A trajetória de 70 anos do PNAE transformou a experiência brasileira em uma referência mundial. Esta conquista foi um dos temas centrais durante a 2ª Cúpula da Coalização Global pela Alimentação Escolar, realizada este mês em Fortaleza. O evento reuniu representantes de mais de 100 países, que firmaram o compromisso de assegurar alimentação escolar para 100% dos estudantes até 2030, inspirados pelo modelo brasileiro.

Em entrevista à Agência Brasil, Daniel Baldoni detalhou a complexa construção dessa política, que integra saúde, educação, desenvolvimento social e até mesmo questões ambientais. Ele também abordou os persistentes desafios orçamentários, enfatizando, contudo, que o PNAE transcendeu a esfera de um governo, consolidando-se como uma política de Estado duradoura.

A Evolução e os Pilares do PNAE Moderno

A história do PNAE abrange dois momentos distintos, segundo Baldoni. Inicialmente, na década de 1950, o programa dependia de apoio internacional e oferecia alimentos formulados, como leite fortificado e biscoitos. Entretanto, a grande virada ocorreu com a promulgação da Constituição de 1988. Baldoni destaca que o Brasil é, possivelmente, o único país a garantir na sua carta magna o direito da criança de se alimentar na escola, uma declaração de enorme impacto e significado.

A redemocratização do país foi crucial para o desenvolvimento de políticas sociais robustas, incluindo o Sistema Único de Saúde (SUS) e a alimentação escolar. Posteriormente, o PNAE moderno começou a tomar forma em meados dos anos 90, impulsionado pela descentralização dos recursos e pelo controle social. Compreendeu-se que, em um país de dimensões continentais como o Brasil, não faria sentido o governo federal centralizar a compra e distribuição de alimentos. Dessa forma, foram criados mecanismos para repassar os recursos diretamente a estados e municípios, com a finalidade exclusiva de adquirir gêneros alimentícios.

Não apenas a descentralização fez a diferença. A partir daí, uma série de normas foi desenvolvida, estabelecendo o que deve compor a alimentação escolar. A lei de 2009 consolidou esses princípios e diretrizes, por exemplo, limitando a presença de alimentos processados e ultraprocessados. Ela exige a inclusão de frutas, hortaliças e que a comida seja preparada na própria escola. Além disso, determina a oferta de alimentos ricos em ferro e vitamina A, nutrientes essenciais em muitas regiões do país, e preconiza a integração da educação alimentar ao currículo dos alunos.

A política reconhece a diversidade cultural do Brasil, defendendo que comer bem significa consumir alimentos que fazem parte da cultura e dos hábitos locais. Em algumas regiões, a merenda pode ser açaí com farinha; em outras, mungunzá; arroz e feijão; ou pescado na região costeira. Por conseguinte, a valorização dos alimentos produzidos localmente é um pilar fundamental, afastando a ideia de que refeições como lasanha congelada representam a culinária brasileira.

Impulsionando a Agricultura Familiar e a Economia Local

Uma das regulamentações mais significativas do PNAE determina que, no mínimo, 30% dos recursos destinados às escolas devem ser utilizados para a compra de alimentos produzidos por agricultores familiares. Esse percentual mínimo pode, inclusive, chegar a 100%, e está previsto um aumento para 45% no próximo ano. Essa medida promove não só uma alimentação mais fresca e diversificada, mas também fortalece a economia local, pois evita o deslocamento desnecessário de alimentos por longas distâncias.

O impacto dessa política vai além da nutrição e da economia. Ela tem um significado profundo na formação dos estudantes. Quando a escola adquire alimentos da agricultura familiar, está consumindo o que a família de um aluno, por exemplo, produz. Baldoni ressalta a beleza desse ciclo, onde a criança pode dizer: “isso veio da minha casa, da minha família”. Ademais, a educação alimentar ensina que a comida não surge em uma prateleira, mas sim de um lugar onde mãos humanas trabalharam, onde foi colhida da terra ou veio de um animal, instigando o respeito pelo alimento e sua origem. Daniel Baldoni brinca que, muitas vezes, a educação alimentar é o espaço onde o método de Paulo Freire se concretiza, pois o ato de comer é tão intrínseco ao dia a dia que permite às pessoas se reconhecerem.

PNAE e o Compromisso Ambiental

O PNAE também se posiciona como uma política ambiental crucial. O sistema alimentar está no cerne do enfrentamento às mudanças climáticas, sendo um dos maiores causadores, ao lado dos combustíveis fósseis. Portanto, se o objetivo é transformar este cenário, políticas poderosas como a alimentação escolar desempenham um papel vital na promoção de práticas mais sustentáveis e conscientes.

Desafios e a Natureza de Política de Estado

Embora consolidado, o PNAE enfrentou desafios orçamentários consideráveis. Até 2023, o programa passou cinco anos sem reajuste, impactando a oferta nos sistemas estaduais e municipais. Atualmente, o valor repassado para a educação básica é de R$ 0,50 por aluno por dia. Questionado sobre se a política estaria sob ameaça, Baldoni enfatiza que o PNAE não é uma política de governo, mas sim uma política de Estado. Ele acredita que nenhum governo eleito conseguiria extinguir um programa tão essencial, pois mães, cuidadores, famílias e estudantes compreendem que a escola é lugar tanto de aprender quanto de comer, e que a alimentação é parte integrante do aprendizado.

No entanto, estrangular o orçamento pode ser uma forma de desmantelar qualquer política pública, mesmo sem extingui-la formalmente. O repasse do PNAE é obrigatório, o que impede o governo de retroceder no orçamento. Contudo, a ausência de reajustes adequados representa uma questão crítica de financiamento. Por isso, uma das grandes lutas atuais é estabelecer, por meio de um marco legal, uma forma de corrigir o valor repassado periodicamente. Naturalmente, isso requer cautela do ponto de vista econômico, considerando o vasto alcance do programa e o grande volume de compras envolvidas. Ainda assim, seria de extrema importância garantir a periodicidade no reajuste para assegurar a perenidade e a qualidade do PNAE.