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Nova regra do CFM sobre terapia hormonal gera revolta em população trans

Nova resolução do CFM proíbe terapia hormonal para menores de 18 anos, gerando revolta na população trans. A decisão, criticada por especialistas e ativistas, impõe barreiras de acesso ao SUS e afeta a saúde mental de jovens trans.
CFM proíbe terapia hormonal trans
Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil

Uma nova resolução do Conselho Federal de Medicina (CFM) proibindo a terapia hormonal para menores de 18 anos gerou indignação na comunidade trans brasileira. A decisão, que entrou em vigor em abril de 2025, impõe restrições significativas ao acesso a tratamentos pelo Sistema Único de Saúde (SUS) e levanta preocupações sobre os impactos na saúde mental de jovens trans.

A experiência de Beo Oliveira Leite e as dificuldades de acesso ao SUS

Beo Oliveira Leite, doutoranda em Saúde Coletiva pela UFBA, iniciou sua transição de gênero em 2019, aos 23 anos, em Vitória da Conquista (BA). A distância de Salvador, onde funcionava o ambulatório trans mais próximo, dificultou o acesso ao Processo Transexualizador do SUS, instituído em 2008 (Portaria nº 1.707) e ampliado em 2013 (Portaria nº 2.803). Mesmo iniciando sua terapia hormonal de forma independente, buscando informações online, Beo enfrentou frustrações com a falta de acompanhamento médico adequado. Embora o CFM permitisse a hormonioterapia a partir dos 16 anos, a exigência de acompanhamento por uma equipe multidisciplinar (pediatra, psiquiatra, endocrinologista, ginecologista, urologista e cirurgião plástico) criava barreiras significativas.

Ela destaca a dificuldade de acesso, mesmo com o SUS, devido ao tratamento, segundo ela, patologizante, que demandava acompanhamento psiquiátrico prévio.

A Resolução CFM nº 2.427 e suas polêmicas implicações

Em abril de 2025, o CFM publicou a Resolução nº 2.427, revisando os critérios para o atendimento de pessoas com incongruência ou disforia de gênero. Esta resolução, aprovada por unanimidade no Conselho, proíbe a terapia hormonal cruzada para menores de 18 anos, uma mudança que gerou forte repúdio de profissionais de saúde e ativistas.

O relator da resolução, conselheiro Raphael Câmara, justificou a medida com base em estudos que apontam um aumento de casos de arrependimento e destransição desde 2020, data da resolução anterior (nº 2.265). Câmara argumentou que a nova resolução está alinhada com as práticas de países como Inglaterra, Dinamarca, Noruega, Suécia, Finlândia e Estados Unidos. Além da proibição da terapia hormonal para menores, a resolução também estabelece 18 anos como idade mínima para cirurgias de redesignação de gênero, e 21 anos para procedimentos com efeito esterilizador.

Impactos na saúde mental e acesso ao SUS, segundo especialistas

Para Beo Leite, a resolução impõe barreiras ao acesso ao SUS, contradizendo o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que garante autonomia a partir dos 12 anos em serviços de saúde. Ela argumenta que procedimentos eletivos sem risco à vida são direitos de crianças e adolescentes, e que a Política Nacional de Saúde LGBT, que garante acesso ao Processo Transexualizador, está sendo prejudicada. A pesquisadora também destaca os impactos negativos na saúde mental de jovens trans que não encontram apoio familiar ou escolar e dependem do serviço público de saúde.

Além disso, Beo aponta a facilidade de acesso a hormônios sem receita médica, levando muitas jovens a usar a terapia hormonal sem acompanhamento adequado. Ela critica a falta de alinhamento da resolução do CFM com as novas estratégias e tecnologias do SUS, e destaca as evidências científicas que indicam a necessidade de ampliar, e não restringir, o acesso à hormonioterapia e cirurgias de afirmação de gênero na adolescência, período de maior incidência de depressão e suicídio entre pessoas trans.

Denúncias de retrocesso e agenda anti-gênero

Bruna Benevides, presidenta da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), considera a resolução um retrocesso e a “afirmação de uma agenda transexcludente”. Ela acusa a resolução de institucionalizar a transfobia e a negação do direito à saúde, e destaca a trajetória do relator Raphael Câmara, que atuou como secretário de Atenção à Saúde Primária no governo Bolsonaro e também relator de uma norma que dificulta o aborto em casos legais. Benevides identifica uma “agenda anti-gênero da extrema-direita” por trás da resolução, que busca controlar corpos e negar acesso à saúde a pessoas trans. A Antra, juntamente com a Associação Mães pela Diversidade, entrou com uma denúncia no Ministério Público Federal (MPF), que abriu um inquérito para apurar a legalidade da Resolução nº 2.427.

Em abril de 2025, a Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP) também se manifestou, solicitando a revogação da resolução e defendendo o retorno da Resolução nº 2.265. A SBP também recomenda novas medidas para garantir acesso universal a recursos diagnósticos e terapêuticos e a proteção integral de pessoas com incongruência ou disforia de gênero.

A importância da voz das crianças e adolescentes trans

Sara Wagner York, especialista em Gênero e Sexualidade e doutoranda na UERJ, enfatiza a ausência da voz de crianças e adolescentes trans na discussão sobre a resolução. Ela questiona se a mesma controvérsia existiria se a questão não envolvesse a transexualidade, argumentando que o problema não reside no uso de medicações ou hormônios, mas sim em ser trans.

O debate em torno da Resolução CFM nº 2.427 continua acirrado, com o MPF investigando a legalidade da norma e a sociedade civil pressionando por sua revogação. A questão central permanece: o direito à saúde e à autodeterminação das pessoas trans, especialmente das crianças e adolescentes, deve ser protegido e garantido, ou continuará cerceado por resoluções que priorizam outros interesses?