Edição Brasília

Napoleão compartilha ambição e problemas com seu protagonista (e diretor)

O maior filme de Napoleão (em muitos sentidos) é o clássico mudo de 1927 dirigido por Abel Gance, um épico cuja versão preferida do diretor, uma entre quase duas dúzias, preenche mais de cinco horas com a ascensão de Bonaparte, despedindo-se do espectador quando o general está prestes a tomar o comando do exército francês na Itália, sua primeira grande campanha. Gance passou anos reeditando e restaurando o projeto, e nunca conseguiu fazer os outros cinco filmes que pretendia, continuando a narrativa.

A vitória na Itália, um dos principais eventos formativos na formação do corso mais famoso da história, sequer é vista na versão do novo Napoleão, dirigida por Ridley Scott, que irá aos cinemas nesta quinta-feira (23). Talvez a vejamos no prometido corte de quatro horas aparentemente a caminho do Apple TV+ em 2024, uma versão do diretor cuja existência adiciona o filme ao legado das tentativas cinematográficas de conquistar o conquistador. Algumas frustradas, como as de Gance, e algumas que nunca saíram do papel, como o longa nunca feito de Stanley Kubrick.

Começo com esta longa explicação porque, mesmo com duas horas e meia, o Napoleão de Scott parece incompleto. Essa palavra pode facilmente ser mal interpretada. Afinal, esta é uma grande produção, com figurinos e cenários recriados com atenção aos mínimos detalhes e um vasto escopo, englobando batalhas avassaladoras com a ambição de contar toda a vida de seu protagonista, aqui interpretado de forma autodepreciativa por Joaquin Phoenix.

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É uma decisão ousada. Felizmente, Scott é o diretor ideal para encarar uma tarefa tão complicada, já que sua carreira está repleta de dramas históricos conduzidos com mão firme, seja pelo Império Romano ou pelas Cruzadas. Em grande parte, ele faz o mesmo com as guerras napoleônicas, passeando por toda a Europa ao longo de décadas e trazendo tanto o lugar quanto seus conflitos à vida. Mesmo com a infertilidade da fotografia cinzenta de Dariusz Wolski, Scott encontra imagens que nos mantém interessados e envolvidos, seja enfatizando os movimentos de soldado nos campos de guerra ou os olhos marcantes de Vanessa Kirby como Josefina Bonaparte.

Por outro lado, poucos cineastas dependem tanto de seus colaboradores quanto Scott. Napoleão sem dúvidas será usado como exemplo no argumento de que Scott vive ou morre com base no quão bom, ou ruim, é o roteiro em suas mãos, diante da superficialidade do texto de David Scarpa.

Filmes inteiros foram feitos com base apenas na derrota de Waterloo, no exílio na Ilha de Elba e no seu romance proibido com Desirée (também ausente aqui). Não é de se estranhar que Scott precise fazer cortes, e essas decisões não devem frustrar ninguém além daqueles com diplomas de História ou muitas horas ouvindo podcasts sobre a época. Mais danoso, porém, é como a aparente necessidade de reduzir Napoleão de suas já lendárias quatro horas para a versão das telonas parecem ter cortado o desenvolvimento temático e o relacionamento central, entre Bonaparte e Josefina.

O casal principal é a arma escolhida pelo filme para traçar uma linha no meio de tantos acontecimentos e ideias, mas o que há de bom entre eles vêm quase inteiramente dos dotes de Phoenix, e especialmente Kirby. Apesar de competente, Phoenix nunca mergulha totalmente no papel, entregando um trabalho que será visto como primo menos inspirado de Gladiador, sua performance em outra colaboração com Scott. Kirby, por sua vez, eleva as poucas facetas de sua personagem apresentadas em tela com um ar de mistério, preenchendo o vazio para transformar Josefina numa figura infinitamente fascinante.

A frustração de ver Napoleão provém da ausência do fervor com o qual eles se observam em quase todo o resto da obra. Assim como os gritos pela “glória de Roma” em Gladiador ou o próprio conceito de Jerusalém em Cruzada foram vazios em seu significado, Scott se mostra pouco interessado, ou incapaz, de caminhar pelas implicações dramáticas do período no qual Napoleão se encontra. A execução de Maria Antonieta abre o filme, mas assim como no Terror ou em qualquer outro aspecto da Revolução Francesa, há uma perceptível falta de forma em volta da encenação. O fato está ali, mas a relação do cineasta com esses momentos, e com o próprio Napoleão, é distante.

A bagagem emocional do protagonista, seja seu desejo pela grandiosidade, seja a relação conturbada com sua terra natal da Córsega, é herdada não pelos méritos da construção de Napoleão, mas sim pelo conhecimento geral que temos da figura. O olhar de Scott enfim ganha identidade quando o véu da seriedade é removido e um certo humor passa a pontuar as cenas. Napoleão nunca vai gerar gargalhadas (exceto quando o imperador proclama que o destino lhe trouxe uma costela de carneiro) mas há uma acidez irônica permeando parte do filme, revelando uma vaidade que Scott identifica, mas nunca aproveita.

É uma pena que Scott não esteja tão disposto a se jogar nisso, já que o toque cômico é a única avenida através da qual Napoleão levanta o tapete para investigar o que move o homem em seu centro. Quando Scott ousa ridicularizá-lo, entendemos a loucura e intelecto inerentes ao trono, assim como o egocentrismo necessário para sentar nele. Esses, porém, nada passam de vislumbres que escapam pelas frestas da montagem estranha de Sam Restivo, sufocado pela necessidade de conter o filme em sua minutagem reduzida.

É uma narrativa inescapável. O interesse do cinema pela história de Napoleão é rivalizado pela obsessão desta arte em como contar essa história. Volto para Gance. Uma das versões de seu filme, uma das únicas com falas, inicia mostrando franceses narrando os feitos do imperador e debatendo a veracidade deles entre si. Foi uma forma do próprio diretor admitir a dificuldade inerente à sua empreitada, e apesar de Scott não adicionar um tempero metalinguístico como este, essa mesma sugestão está ali quando vamos, de maneira abrupta, para o próximo capítulo.

Não há garantia de que o material excluído de Napoleão irá salvar o filme, já que onde Ridley Scott deixa a desejar é, também, na execução do que compõe os 158 minutos deste corte. O ritmo frenético da obra, combinada com a existência da edição de quatro horas, aponta para a vontade do diretor de passar mais tempo ali. Na batalha de Waterloo, o rival britânico de Bonaparte, Duque de Wellington (Rupert Everett) aponta para a paciência como a chave para a vitória contra a França. Quem sabe essa mesma virtude ajudará o filme, um dia.

Fonte: https://www.chippu.com.br/titulos/napoleon-2023

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