Milhões de mulheres negras de todo o país convergem para Brasília em 25 de novembro, unindo-se na 2ª Marcha Nacional por Reparação e Bem-Viver. O movimento vibrante exige justiça histórica e o enfrentamento contundente ao racismo estrutural que persiste na sociedade brasileira. A delegação da Paraíba, por exemplo, empreende uma jornada de quase dois dias, impulsionada por uma notável obstinação que o estado do Nordeste cunhou como “teimosar”.
O Grito por Reparação e a Definição do Bem-Viver
A agenda central da Marcha transcende a mera reivindicação de direitos básicos, pois defende um conceito holístico de bem-viver. Este engloba, primordialmente, o acesso à moradia digna, emprego justo e seguro, e a garantia de segurança. Entretanto, vai muito além, aspirando a uma existência livre de violência e plena de dignidade. Além disso, as participantes pleiteiam ações de reparação concretas, visando mitigar os profundos e seculares danos impostos pela escravidão e pela subsequente expropriação da população negra no Brasil. Dessa forma, a mobilidade social torna-se um pilar fundamental nesta pauta, buscando corrigir as distorções históricas que ainda hoje moldam as oportunidades de vida de milhões de pessoas. Em suma, o bem-viver é a materialização de uma sociedade equitativa onde a dignidade é inegociável.
A “Teimosia” que Inspira e a Origem da Abayomi
A palavra “teimosando”, que hoje simboliza a resiliência do movimento de mulheres negras na Paraíba, encontra suas raízes na inspiradora fala da líder quilombola e enfermeira Elza Ursulino. Em uma homenagem ocorrida em 2024, Elza, originária do quilombo Caiana dos Crioulos, no interior do estado, narrou como sua insistência em levantar discussões sobre as condições de sua comunidade, apesar da repressão familiar, era uma “teimozeira” que visava a melhoria. Conforme explicou Durvalina Rodrigues, ativista e coordenadora da organização paraibana Abayomi, essa declaração capturou perfeitamente o espírito da marcha de 2025. A Abayomi, cujo nome em iorubá significa “encontro precioso”, nasceu das reflexões pós-primeira Marcha de Mulheres Negras, em 2015. Durvalina recordou que “Naquela época, sabíamos que a marcha ia ser algo grande, mas nós não tínhamos a ideia de que seria histórico”. Em seguida, ao retornar para casa e fazer um balanço do evento, as ativistas decidiram criar a organização para dar continuidade e expandir as discussões sobre o combate ao racismo e às diversas formas de violência enfrentadas pelas mulheres negras. Por conseguinte, a Abayomi se estabeleceu como um espaço vital para o acolhimento e o empoderamento de mulheres negras de diferentes perfis.
Autocuidado como Atitude Política e as Cicatrizes da Escravidão
Ao longo de 2025, em preparação para o evento em Brasília, a Abayomi, em colaboração com outras entidades de mulheres negras do Nordeste, organizou uma série de atividades focadas nos temas do bem-viver e da reparação. O autocuidado, por exemplo, foi abordado como um ato político de resistência individual que, por sua vez, gera impacto coletivo. Esse tema, aliás, ressurge dez anos depois da primeira marcha, reafirmando sua importância. A psicóloga Hidelvânia Macedo, da Abayomi, salientou que o estresse constante no trabalho, no lar e na comunidade, muitas vezes, inviabiliza o autocuidado, contribuindo para doenças crônicas, sofrimento psicológico e solidão, com consequências coletivas. Contudo, quando praticado, o autocuidado fortalece positivamente a autoestima e a autodeterminação, servindo como uma ferramenta essencial de empoderamento.
Por outro lado, o conceito de reparação busca corrigir as distorções que emanam do racismo estrutural, caracterizado pelo tratamento desigual dispensado a pessoas negras devido à própria constituição social. Historicamente, ao contrário de imigrantes, as pessoas negras escravizadas no Brasil não receberam indenização após a abolição, tampouco tiveram acesso à terra ou à educação formal, que por anos lhes foi proibida. Essas lacunas históricas, portanto, são a base das profundas desigualdades atuais. Na região Nordeste, por exemplo, onde a taxa de analfabetismo é o dobro da nacional (14%) e a proporção de pessoas em situação de extrema pobreza é maior, predominam indivíduos pretos e pardos, conforme dados do IBGE, evidenciando a urgência de medidas reparatórias.
Necropolítica, o Despertar e as Propostas do Manifesto
Durvalina Rodrigues ressalta que, nas discussões promovidas pela Abayomi, a pauta da reparação precede a do bem-viver, remetendo diretamente às explicações históricas e ao colonialismo, que “nos tiraram tudo, até a perspectiva existir”. Dessas atividades preparatórias, emergem ainda reflexões cruciais sobre políticas públicas que definem quem tem direito à vida, como as de saúde e segurança, que, segundo ela, representam um grande legado da marcha de 2025. Ademais, ela observa que “quando as mulheres começam a perceber que a política de morte, a necropolítica, tem um viés histórico, com base no racismo, percebemos um despertar”. O conceito de necropolítica, em suma, explora como o Estado pode, por ação ou omissão, abandonar e condenar certas populações à morte, sendo a própria escravidão um exemplo gritante de submissão sistemática à violência e à morte.
Em resposta a esses desafios complexos, a Marcha das Mulheres Negras lançou o Manifesto Econômico e Institucional, apresentando propostas ambiciosas em sete eixos estratégicos. Essas incluem a criação de um fundo econômico específico, a taxação de grandes fortunas e heranças, a implementação de políticas para a redução da taxa de juros e a blindagem do orçamento social. Além disso, o manifesto pleiteia reformas agrária e urbana abrangentes, bem como linhas de crédito facilitadas e ações afirmativas em empresas que prestam serviços à administração pública. Conforme a líder quilombola Elza, Durvalina expressa sua convicção de que a marcha, nesta edição, continuará a impulsionar reflexões vitais e a fortalecer as organizações de mulheres, capacitando-as a liderar e acelerar as transformações necessárias na sociedade brasileira.



