Na Ilha de Marajó, no Pará, a relação das crianças com os búfalos em áreas alagadas de Soure transcende a simples brincadeira; ela simboliza a profunda conexão cultural e econômica da região com o animal. Enquanto os pequenos divertem-se adestrando os mamíferos, uma visão ambiciosa começa a tomar forma: a criação de um Centro de Estudos da Bubalinocultura. Este projeto inovador, idealizado como uma verdadeira “universidade do búfalo”, propõe-se a ser um polo de pesquisa e desenvolvimento focado no manejo, genética e sustentabilidade integral deste animal emblemático.
O Búfalo como Símbolo e Pilar Econômico no Marajó
O búfalo, de fato, constitui o principal ícone do Marajó, abrigando o maior rebanho bubalino do Brasil, com estimativas que variam de 650 mil a 800 mil animais. A maioria desses rebanhos concentra-se em municípios como Soure, Chaves e Cachoeira do Arari. Consequentemente, a presença do animal permeia diversos aspectos da vida local: desde estátuas nas ruas até seu uso em transporte, policiamento e, notavelmente, na culinária regional, com pratos como o afamado filé mignon com queijo de búfala.
Diante desta centralidade, a família proprietária da Fazenda e Empório Mironga concebeu o projeto do Centro de Estudos da Bubalinocultura. Embora ainda sem uma data definida para implementação, a iniciativa almeja ser a primeira do país dedicada exclusivamente à pesquisa aprofundada sobre a genética, o manejo e o aproveitamento holístico do búfalo. O fazendeiro Carlos Augusto Gouvêa, popularmente conhecido como Tonga, ressalta a urgência de tal empreendimento. Segundo ele, é essencial “estudar melhor o búfalo” para promover o melhoramento genético, agregar valor em seus produtos (leite, couro, carne), aprimorar o manejo e as questões sanitárias. Além disso, Tonga enfatiza que o centro não se restringiria a áreas tradicionais como veterinária e agronomia, mas também envolveria tecnologia de alimentos, turismo e até medicina, promovendo uma abordagem multidisciplinar para aprimorar e divulgar o conhecimento sobre o animal.
Inovação e Turismo na Fazenda Mironga: Uma Nova Perspectiva
Enquanto o ambicioso Centro de Estudos não se concretiza, a família Gouvêa já implementa alternativas inovadoras para valorizar a bubalinocultura local. Nesse sentido, desde 2017, a Fazenda Mironga oferece a “Vivência Mironga”, uma proposta de turismo pedagógico. Através dela, os visitantes têm a oportunidade de imergir no cotidiano da propriedade, observando de perto a produção artesanal do queijo de leite de búfala e as práticas agroecológicas adotadas no local.
Gabriela Gouvêa, filha de Tonga e presidente da Associação dos Produtores de Leite e Queijo do Marajó (APLQM), explica a evolução estratégica do negócio. Anteriormente, a fazenda produzia queijo e doces em larga escala. No entanto, com uma área limitada de 90 hectares e o desejo de não expandir a produção indiscriminadamente, o turismo emergiu como um caminho promissor. Atualmente, o setor turístico representa uma parcela significativa da receita, correspondendo a dois terços do faturamento da fazenda. Em setembro, a propriedade alcançou um recorde de 400 visitantes, evidenciando o sucesso dessa transição.
Ademais, a luta pela legalização do queijo marajoara artesanal, com suas técnicas seculares transmitidas por gerações a partir de leite cru, contou com a participação ativa da família Gouvêa. Eles foram cruciais na construção de uma legislação sanitária específica para o produto. Por conseguinte, em 2013, a queijaria da Mironga conquistou a primeira inspeção oficial. Posteriormente, o queijo obteve a cobiçada Indicação Geográfica do Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI), um reconhecimento de sua origem e qualidade. O Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae) desempenhou um papel fundamental em todo esse processo, desde o diagnóstico até a legalização e organização coletiva.
Gastronomia e Conexão Afetiva no Café Dona Bila
Distante das fazendas, porém igualmente enraizado na cultura local, o Café Dona Bila, em Soure, tornou-se um refúgio de memória afetiva e culinária regional. Lana Correia, uma empreendedora cearense, lidera o estabelecimento, unindo a riqueza da culinária nordestina, como cuscuz e tapioca, aos ingredientes autênticos do Pará, destacando o queijo marajoara e a carne de búfalo. Ela iniciou o negócio com delivery em 2023, e a crescente demanda a levou a abrir um espaço físico, impulsionada pelo desejo de criar um café com “sabor e clima de casa”.
Conforme relata Lana, seus clientes frequentemente expressam uma profunda conexão emocional com o café. “As pessoas dizem que, quando comem aqui, lembram da infância, da casa da avó, dos tempos em que vinham à Praia do Amor”, explica a empreendedora. Esta evocação de memórias afetivas é o que, para ela, torna o café verdadeiramente especial. O ambiente acolhedor e um cardápio repleto de referências familiares conquistaram tanto moradores quanto turistas, que frequentemente pedem a tapioca molhada (com recheios de queijo e carne), o bolo de milho cremoso e o cuscuz recheado. Em preparação para a 30ª Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (COP30), que ocorrerá em Belém em novembro, Lana desenvolveu dois novos pratos que enaltecem ainda mais os ingredientes locais: o Cuscuz de Murrá, feito com filé de búfalo, e o Cuscuz Praia do Amor, que combina camarão regional e queijo do Marajó.
Lana reside em Soure há quatro anos e está à frente do Café Dona Bila há dois. Sua trajetória profissional anterior incluiu a área de educação superior em Fortaleza e Belém. No Marajó, entretanto, ela descobriu sua verdadeira paixão pela gastronomia, inicialmente cozinhando apenas para amigos. Com o apoio do Sebrae em capacitações e articulações locais, Lana consolidou-se como um exemplo da nova geração de empreendedores marajoaras, que priorizam a valorização da cultura e dos produtos regionais.
Desafios Ambientais e a COP30
Apesar da rica tapeçaria cultural e econômica que o búfalo representa para o Marajó, a produção e o consumo de seus derivados não estão isentos de desafios ambientais significativos. A eminente 30ª Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (COP30), agendada para novembro em Belém, terá como pauta principal a redução das emissões de gases do efeito estufa. Nesse contexto, o Sistema de Estimativas de Emissões e Remoções de Gases de Efeito Estufa (SEEG) apontou, em seu último levantamento de 2023, a pecuária como a segunda maior emissora do país, superada apenas pelas mudanças de uso da terra.
Os bovinos, categoria que inclui os búfalos, foram responsáveis pela emissão de 405 milhões de toneladas de dióxido de carbono equivalente (MTCO2e) no período analisado. Tal fenômeno se deve, principalmente, à liberação de gás metano (CH4) durante o processo digestivo desses animais. Portanto, a busca por soluções para mitigar essa pegada ambiental se configura como um dos principais enigmas a serem desvendados pelo futuro Centro de Estudos da Bubalinocultura, evidenciando a interconexão entre desenvolvimento econômico, cultura e sustentabilidade.
É importante salientar que a equipe de reportagem da Agência Brasil viajou para a realização desta matéria a convite do Sebrae.