Em uma iniciativa marcante, o pensador e ambientalista Ailton Krenak, ao lado de diversos povos indígenas, conduziu uma travessia inédita pela Baía de Guanabara, no Rio de Janeiro, no último sábado (25). Esta jornada fluvial não apenas resgatou a rica história ancestral da região, mas também enfatizou a urgência da proteção ambiental diante dos desafios contemporâneos.
Jornada pela Memória Ancestral
A embarcação Águamãe partiu pontualmente às 13h30 do porto da Praça XV, no coração do Rio de Janeiro. Embora a viagem ocorresse no presente, ela se debruçava intensamente sobre o passado e o futuro da Baía de Guanabara. Com efeito, a expedição foi liderada por Krenak e pelo renomado cantor, compositor e pesquisador Mateus Aleluia, proporcionando à tripulação uma imersão profunda na relevância dessas águas.
Adicionalmente, a Baía de Guanabara, historicamente, foi lar de mais de 80 aldeias indígenas e, posteriormente, testemunhou a chegada dos europeus e o maior desembarque de pessoas escravizadas da África em toda a América. Atualmente, o local abriga plataformas de petróleo, frequentemente afetado por vazamentos e poluição. Todavia, ainda hoje, suas águas são palco de pesca e banho de mar, evidenciando uma coexistência complexa.
A travessia inédita, realizada no sábado, foi uma iniciativa da Associação Selvagem Ciclo de Estudos, uma organização não governamental cofundada por Krenak, Anna Dantes e Madeleine Deschamps. Além disso, a navegação contou com a parceria estratégica do Museu do Amanhã e Barcas Rio, sendo um dos destaques da programação da Temporada França-Brasil 2025. Durante o percurso, cantos, conversas e apresentações enriqueceram a exploração, trazendo à tona narrativas muitas vezes esquecidas.
Vozes Indígenas e a Essência da Baía
Participantes da travessia compartilharam suas perspectivas sobre a profunda conexão com a Baía de Guanabara. Por exemplo, a jornalista, roteirista, curadora e multiartista Renata Tupinambá expressou que a Guanabara é uma “mãe de muitos povos”, um local que acolhe e acolheu, comparando-a a um útero que abraça suas águas.
Renata, que apresentou poesia e canto em tupi durante a jornada, lembrou que sua própria etnia, os Tupinambás, habitou a região e, apesar de ter sido considerada extinta, foi novamente reconhecida nos anos 2000. Subsequentemente, ela destacou que o retorno do Manto Tupinambá ao Rio de Janeiro no ano passado, após décadas na Dinamarca, simboliza a resistência e a persistência de seu povo. Conforme suas palavras, o manto é “mais velho que o Brasil”, e sua presença “fortalece as narrativas de um Rio que ainda não era Rio, mas que está cercado de memórias naquelas águas que são a Guanabara”.
O artista, cineasta e líder espiritual Carlos Papá Mirim Poty, por sua vez, ressaltou a herança indígena presente no cotidiano carioca. Ele explicou que muitos nomes de bairros, como Ipanema e Jacarepaguá, e até mesmo a palavra “carioca”, têm origens indígenas. Assim, ele enfatizou a honra de “revelar os nomes, os significados e os porquês” que muitos habitantes do Rio desconhecem.
A Vida Além do Humano na Guanabara
Carlos Papá também chamou a atenção para os seres não humanos que habitam a Baía de Guanabara. Recentemente, a despoluição de trechos da baía permitiu a reabertura de praias como a do Flamengo para banho, o que, consequentemente, levou a uma maior valorização da vida ali presente. Em sua visão, à medida que a consciência humana se expande para entender que não somos os únicos habitantes ou dependentes do ambiente, haverá mais cuidado na interação com a natureza, reconhecendo a importância de crustáceos, animais e moluscos.
Similarmente, a pensadora, aprendiz de parteira e educadora Cristine Takuá, do povo Maxakali, acrescentou que os demais seres vivos oferecem lições valiosas à humanidade. Ela argumentou que coletivos como os de cotias, formigas ou abelhas conseguem interagir eticamente muito melhor do que os humanos. Dessa forma, ela criticou a “guerra da humanidade contra a própria humanidade”, defendendo que “foram muitos séculos de uma humanidade que não soube caminhar, que pisou muito pesado na Terra e hoje a Terra está machucada”.
O Passado e o Futuro Ambiental
A Baía de Guanabara, com seus 337 quilômetros quadrados de espelho d’água e 40 ilhas, é um ecossistema complexo onde 143 rios e córregos deságuam, servindo de moradia para 8,4 milhões de pessoas. Situada entre a Serra dos Órgãos e maciços costeiros menores, ela é um repositório de vida, tendo sido berçário de baleias, um centro de negócios baleeiros e, posteriormente, o principal porto de metais preciosos. Atualmente, continua sendo um porto crucial por onde circulam milhões de toneladas de produtos. Curiosamente, para os povos indígenas Tukano e Dessano do Rio Negro, na Amazônia, a Baía de Guanabara é o “Lago do Leite” onde a canoa-cobra de sua travessia cósmica pela Via Láctea teria chegado.
Para a diretora e cofundadora do Selvagem e da Dantes Editora, Anna Dantes, a Baía de Guanabara oferece importantes lições para o futuro, sobretudo no contexto do debate sobre a exploração de petróleo na bacia sedimentar da Foz do Amazonas, na Margem Equatorial. Ela recordou o emblemático vazamento de óleo de 2000, quando um duto da Petrobras rompeu, liberando 1,3 milhão de litros de combustível e poluindo 40 km² da baía, um dos maiores acidentes ambientais do Brasil. De acordo com Anna, as complexidades vividas na Baía de Guanabara são “fruto de um sistema extrativista, de um sistema colonial”, cujos danos são visíveis.
Às vésperas da 30ª Conferência das Nações Unidas sobre Mudança do Clima (COP30), que ocorrerá em Belém em novembro, a antropóloga, escritora e cineasta Nastassja Martin enfatizou a necessidade de ouvir os povos tradicionais ao discutir o futuro e o meio ambiente. Ela argumentou que a questão não é apenas integrar, mas escutar aqueles que vivem em conexão com esses lugares, águas e animais, pois eles “sabem o que está acontecendo porque vivenciam isso todos os dias”. Para Martin, as mudanças climáticas são uma questão “muito sensível” e de “sobrevivência”, não meramente teórica.
A Filosofia da Existência de Ailton Krenak
Em uma reflexão sobre a forma como a sociedade pode transformar seu pensamento e, consequentemente, o rumo da humanidade, Ailton Krenak propõe um cuidado mais profundo com o próximo, com todos os seres vivos e com o meio ambiente. Ele contrapõe a filosofia ocidental, que prega a existência para “realizar algo” e deixar um legado de produções e monumentos, a uma perspectiva diferente.
Em trecho de seu livro “Um Rio Um Pássaro”, Krenak sugere que “podemos existir sem ter que deixar nada”, pois “receber a vida e viver, por si só, é maravilhoso demais”. Para ele, “quando chegamos à Terra, descemos como pássaros que pousam silenciosamente, e um dia partimos de viagem ao céu sem deixar marcas”, uma metáfora para uma existência mais leve e integrada à natureza, distante da imposição de legados materiais.



