A Temporada França-Brasil, um intercâmbio cultural que visa fortalecer os laços entre os dois países, ganha um olhar profundo e reflexivo através das obras de artistas negras. Essas artistas exploram as marcas da colonização e a influência da cultura afro na arte contemporânea, gerando um diálogo essencial sobre identidade, memória e resistência. Um exemplo notável é o espetáculo “Atomic Joy”, da coreógrafa e artista visual Ana Pi, que convida à reflexão sobre a importância das expressões artísticas negras no mundo.
Ana Pi e a Celebração da “Alegria Atômica”
“Imaginem, nesse mundo em que a gente vive, se tirar o samba, tirar a salsa, tirar o jazz, tirar o hip-hop, tirar o funk. Será que a gente ainda estaria aqui?”. Com essa provocação, Ana Pi introduz o conceito de “Atomic Joy”, um espetáculo que celebra a vitalidade das danças de rua e sua capacidade de transcender a adversidade. A artista, que reside na França há 14 anos, enfatiza a relevância da cultura negra, especialmente em um país onde a população negra enfrenta desafios significativos. Ana Pi, mineira de Belo Horizonte, construiu uma carreira internacional como pedagoga, bailarina e pesquisadora das danças urbanas. Seu trabalho mais recente, “Atomic Joy”, é uma ode à alegria e à luta, à guerra e à delicadeza das vibrações, tudo isso expresso através das danças de rua.
No Brasil, a população negra, que representa a maioria (55,5% segundo o IBGE), é também a mais vulnerável à violência. Dados do Atlas da Violência revelam que o risco de uma pessoa negra ser vítima de homicídio é 2,7 vezes maior do que o de uma pessoa não negra. Apesar dessa realidade, a população negra é a força motriz por trás de grande parte da produção cultural brasileira e mundial. O espetáculo “Atomic Joy” busca equilibrar a celebração da alegria com a consciência da batalha constante, utilizando a dança como ferramenta de comunicação ancestral, que une pessoas globalmente.
A Dança como Linguagem Universal
Segundo Ana Pi, as danças de rua são mais do que meros movimentos; são ferramentas de comunicação ancestrais que evoluíram e se espalharam pelo mundo, conectando pessoas de diferentes origens. A artista busca levar para os palcos a autenticidade das ruas, mostrando que a arte reside em todos os lugares, não apenas nos espaços formais. Além disso, “Atomic Joy” aborda as batalhas individuais e coletivas, bem como as batalhas de dança, que são eventos de troca e aprendizado mútuo. A coreógrafa descreve a alegria que busca expressar como “amoral”, reconhecendo que a felicidade pode coexistir com a maldade, e que a resistência é um componente essencial dessa alegria. O termo “atômico” evoca tanto a ideia de uma bomba quanto a dimensão infinitesimal e frágil da alegria, revelando sua complexidade.
Beya Gille Gacha e a Busca pelas Raízes Africanas
Enquanto Ana Pi encontrou na França um terreno fértil para suas pesquisas, a escultora e artista multidisciplinar francesa Beya Gille Gacha buscou no Brasil informações sobre suas próprias origens. Nascida em Paris, filha de mãe camaronesa e pai francês, Gacha participa do projeto Oceano Negro, que inclui uma residência artística em Salvador, como parte da Temporada França-Brasil. Anteriormente, uma residência artística em Itaparica, Bahia, proporcionada pelo Instituto Sacatar, teve um impacto profundo em sua vida. Essa experiência permitiu que ela se reconectasse com sua criatividade e encontrasse um espaço para se reinventar.
Durante a residência, Gacha teve um sonho que a direcionou para Camarões, o país de origem de sua mãe. Lá, descobriu o Porto de Bimbia, um ponto de partida para muitos africanos escravizados que foram levados para a Europa e as Américas. Essa descoberta aprofundou sua compreensão da ligação entre Brasil e África, revelando uma história de dor e resiliência. Conforme a artista, existe uma “amnésia” compartilhada tanto pelos descendentes de africanos que foram levados para outros continentes quanto por aqueles que permaneceram na África, um apagamento imposto pela violência da escravidão. Gacha, praticante de vudu, encontrou no Brasil elementos de sua religião que não via mais em Camarões, demonstrando a complexidade e a riqueza da diáspora africana.
O Projeto Oceano Negro e a Descolonização Através da Arte
O projeto Oceano Negro, liderado por Beya Gille Gacha, tem como objetivo promover um espaço de cuidado e criação para artistas, valorizando as residências artísticas como momentos de renascimento e descoberta. A artista brasileira Fabiana Ex-Souza, residente em Paris desde 2010 e também parte do Little Africa Village, acredita que o Brasil funciona como um “santuário” para a diáspora africana, preservando tradições que foram perdidas em outros lugares devido à colonização. Segundo Fabiana, a África vem ao encontro da diáspora no Brasil, criando um espaço de encontro e de experiências sensíveis para o mundo.
A busca pela identidade levou Fabiana a adicionar “Ex” ao seu sobrenome, Souza, que ela acredita ser uma herança da escravidão. Essa mudança representa um espaço de descolonização mental e espiritual, sem romper completamente com o passado. A Temporada França-Brasil, fruto de um acordo entre os presidentes Luiz Inácio Lula da Silva e Emmanuel Macron, busca fortalecer os laços culturais entre os dois países. Os temas centrais da temporada incluem a diversidade de sociedades, o diálogo com a África, a democracia, o Estado de direito, o clima e a transição ecológica. A programação, que se estende de agosto a dezembro, acontecerá em 15 cidades brasileiras, promovendo um intercâmbio cultural enriquecedor e uma reflexão profunda sobre a história e o futuro das relações entre Brasil e França.