Mais um dia de agenda repleta de atividades para os amantes do cinema no DF. A quinta-feira (17), quarto dia do Festival de Brasília do Cinema Brasileiro (FBCB), contou com filmes, debates, conferências e oficinas, promovendo o contato direto com o melhor da produção audiovisual no país. O evento é realizado pela Secretaria de Cultura e Economia Criativa do DF (Secec), com a organização da sociedade civil Amigos do Futuro.
A Mostra Competitiva Nacional, realizada simultaneamente no Cine Brasília, Complexo Cultural de Planaltina e Complexo Cultural de Samambaia, trouxe duas produções, do Rio de Janeiro e de São Paulo. Escasso, da dupla Clara Anastácia e Gabriela Gaia Meirelles, é uma comédia carioca que tem como protagonista a própria diretora Clara. O filme, já premiado no festival IndieLisboa, tirou risos da plateia com a história de uma inquilina irreverente, que diz “cuidar da casa” enquanto a moradora não volta.
“Essa é uma história intrigante, singular e relativamente desconhecida”
Padre Júlio Lancelloti, sobre o filme São Marino
Entre cômico e crítico, a moradora-invasora dirige a equipe que faz o filme, em uma instigante dobra de linguagem. “Um filme é sempre uma oportunidade de encontro”, anunciou Gabriela. Elas revelaram que a obra foi feita na casa da atriz e diretora, que foi ocupada por outros “invasores”: os cupins. Por causa disso, o filme foi feito como uma despedida da casa, que é também uma das personagens da história.
Com tema, personagens e abordagem narrativa instigantes, o curta paulista São Marino dá visibilidade à curiosa trajetória de um monge transmasculino que viveu no século VI, no Líbano. Com narração do padre Júlio Lancellotti e intervenções ficcionais de Ariel Nobre, o filme debate e reflete sobre a questão do gênero num contexto de interação e ressignificação. “Essa é uma história intrigante, singular e relativamente desconhecida”, diz logo no início o padre Lancellotti. “Foi um filme que fizemos no silêncio, no segredo”, revelou a diretora Leide Jacob.
Filme denúncia no melhor estilo documentário-jornalístico, Mandado, da dupla João Paulo Reys e Brenda Melo Moraes, revela o drama dos moradores do Complexo da Maré, no Rio de Janeiro, vivido meses antes da Copa do Mundo de 2014, quando tiveram suas casas e honra vilipendiadas pela truculência do Estado. Por meio de entrevistas e depoimentos contundentes, entre eles o de Marielle Franco, vereadora carioca assassinada em 2018, o longa revela a fragilidade do sistema penal e das forças de segurança em meio a uma democracia fragilizada.
“O filme tinha que ser algo para cima. Não queria mostrar que as mulheres falam de dores, de problemas. Cada mulher tem seu brilho e foi isso que me motivou na direção e na montagem”
Juliana Corso, diretora do filme Virada de jogo
Já na Mostra Brasília, os olhares atentos da plateia calorosa e muito participativa do Cine Brasília conferiu a exibição de três produções muito elogiadas ao fim de cada sessão. Idealizado em meio à primeira onda da pandemia de covid-19, ainda em 2020, o primeiro deles foi o curta Tá tudo bem, de Carolina Monte Rosa, que arrancou aplausos do público ao provocar uma reflexão sobre uma situação dramática, mas bastante comum nos grandes centros urbanos brasileiros e que foi agravada no período pandêmico: pessoas em situação de rua, que enfrentam obstáculos no acesso à alimentação, higiene e outros direitos básicos.
“A intenção mesmo é causar uma reflexão para que possamos ficar atentos ao que está ao nosso redor. Olhar para as pessoas que passam por nós, que estão na nossa comunidade, que estão na nossa casa”, explicou Carolina antes do início da exibição.
Virada de jogo, de Juliana Corso, foi o segundo curta da Mostra nessa quinta-feira (17). A obra, produzida com apoio da Secec, reúne depoimentos e percepções de mulheres fortes, resilientes e que alimentam diariamente o desejo de inspirar pessoas e transformar comunidades.
“O FAC é a engrenagem que faz o cinema de Brasília existir. Foi graças a esse investimento que conseguimos nos organizar, fazer as filmagens antes da pandemia chegar e usar o confinamento para montar e editar”
Wesley Godim, diretor do documentário Afeminadas
Ao todo, são retratados sete universos de mulheres, das mais variadas idades, que não se deixaram abater pelas condições adversas para virar um jogo. “O filme tinha que ser algo para cima. Não queria mostrar que as mulheres falam de dores, de problemas. Cada mulher tem seu brilho e foi isso que me motivou na direção e na montagem”, resumiu a diretora.
Por fim, o documentário Afeminadas, primeiro longa do diretor Wesley Godim, mergulha no universo drag queen e retrata um dia da vida de cinco personagens de diferentes regiões do Brasil: Safira O’Hara, Khryz Amusa, Chandelly Kidman, Hellena Borgyz e Jefferson Lemons. Para concluir a missão de documentar a luta cotidiana dessas pessoas, a ideia de Wesley contou com recursos do Fundo de Apoio à Cultura do Distrito Federal (FAC) e assim foi possível registrar, de uma forma espontânea e comovente, a busca por espaço, pela aceitação e, sobretudo, por igualdade de direitos.
“O FAC é a engrenagem que faz o cinema de Brasília existir. Sem esse apoio seria inviável a filmagem do documentário, já que ficaríamos limitados. Foi graças a esse investimento que conseguimos nos organizar, fazer as filmagens antes da pandemia chegar e usar o confinamento para montar e editar”, destacou Wesley.
Paralelas
Dando continuidade às mostras paralelas da 55ª edição do Festival de Brasília, a quinta-feira exibiu o terceiro filme da Mostra Reexistências: Uýra – A retomada da floresta, de Juliana Curi. Nele, Uýra, uma artista trans indígena, usa a Floresta Amazônica como cenário para sua arte performática tocar em temas como questão ambiental, apagamento da cultura indígena, racismo estrutural, transfobia no Brasil e comunicação com a ancestralidade.
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A roteirista Martina Sönksen, que representou o longa antes da exibição, destacou o desafio na escrita do roteiro, que começou pelas redes sociais. Segundo ela, três eixos se cruzaram na construção de um discurso poético, que abre mão da narrativa linear e aproveita silêncios e exuberância nas performances dentro floresta, no Rio Negro e em igarapés poluídos por milhares de garrafas PET na periferia de Manaus, onde Uýra mora e de onde surge, assumindo sua pele de pessoa trans em uma sociedade cujos pensamentos homofóbicos são traídos pelos olhares de passantes.
O produtor João Henrique Kurtz, no debate promovido após a sessão, frisou que a produção sobre a retomada da floresta, subtítulo provocador da obra, construiu um filme “que é para sentir e fruir, tanto quanto refletir. É uma militância de impacto, que fala a partir de lugares diferentes e que transita entre a floresta e a rua”.
Teve sequência também a homenagem ao cineasta Jorge Bodanzky, com a exibição de uma pérola da sétima arte neste quarto dia de FBCB. Única aventura do diretor de teatro Antunes Filho no cinema, o drama Compasso da Espera, de 1973, tem direção de fotografia do homenageado e foi um dos primeiros filmes nacionais a falar abertamente sobre racismo.
“Essa é uma luta que tem que ser constante e o filme mostra isso. O povo preto sofre, mas no sofrimento encontra a alegria e a vontade de viver”
Leni Rabbi, sobre o filme Rumo
“Este momento é especial porque é uma dupla homenagem: ao [ator] Zózimo Bulbul e ao cinema que trata da questão do negro; e a mim, pelo trabalho de fotógrafo”, disse Bodanzky no palco do Cine Brasília.
“Foi uma experiência quase que radical na fotografia, eu mesmo estou curioso porque não vejo esse filme desde a época em que ele foi lançado, nunca mais revi o filme”, confidenciou o veterano cineasta. A mesma sensação foi compartilhada pelo público, com relatos de quem viu ou reviu o filme nas telonas do Cine Brasília. “Há muito tempo que não via este filme e foi uma emoção grande revê-lo agora”, comentou a jornalista Gioconda Caputo. “Foi a melhor coisa que vi nessa edição do Festival”, resumiu.
Formativas
Tendo como princípio o diálogo para a construção de novos caminhos, a programação do Festival de Brasília conta com importantes atividades formativas, que envolvem oficinas e os tradicionais debates. Como já é de praxe, as manhãs do festival são tomadas pelos encontros com os realizadores dos filmes exibidos na Mostra Competitiva na noite anterior.
Assim, nessa quinta-feira (17), se reuniram os representantes de Calunga Maior, Sethico e Rumo. E, a julgar pela sessão do dia 16, em que o poder negro reverberou nas telonas, era de se esperar que o debate fosse igualmente emocionante.
Depois de impactar o público com narrativas urgentes e pungentes, os realizadores dos três filmes falaram sobre processos de criação, elenco e as experiências pessoais e empíricas que resultaram nos projetos. Diretor do curta paraibano Calunga Maior, Thiago Costa disse que o filme demandou três anos de pesquisa e foi motivado pelo desafio de falar sobre o corpo negro a partir de narrativas de invenção e poesia. “Foi um desafio apresentar um sonho num filme, falar desse mundo físico e espiritual, mostrar que esse mundo de sonhos não é um passo irreal”, disse.
Impactante e belo na sua narrativa cheia de signos e elementos sonoros e visuais sensoriais, o pernambucano Sethico se envereda também pela proposta poética-experimental. Para o diretor Wagner Montenegro, o filme é um experimento. “O assombro no filme não é a morte, mas as pessoas brancas e como elas veem a negritude com assombro”, observou.
Urgente e necessário, o drama Rumo, um dos longas do Distrito Federal que integra a Competitiva do FBCB, mexeu com o público na noite de exibição e também levou às lágrimas algumas pessoas que participaram do debate. Misturando ficção e documentário, ele reflete sobre o racismo no seio da Universidade de Brasília (UnB) ao falar sobre o sistema de cotas para negros por meio da trajetória de superação de Samuel e sua mãe, dona Leni. A dupla é vivida por Sierra Veloso e Leni Rabbi, respectivamente.
“Essas pessoas como as personagens do filme têm que ser referência, porque eu me considero uma referência”, contou Leni Rabbi, que está no sexto ano do curso de artes dramáticas da UnB. “Essa é uma luta que tem que ser constante e o filme mostra isso. O povo preto sofre, mas no sofrimento encontra a alegria e a vontade de viver”, ensinou.
Também de muito aprendizado foi a oficina de Interpretação para Cinema, ministrada pela atriz e preparadora de elenco Fernanda Rocha, que já faturou importantes premiações nacionais, como o Festival de Gramado e o Festival do Rio. Ela discutiu técnicas de construção de personagens e contextualizou o mercado audiovisual atual, destacando o desafio representado pelos meios digitais, uma vez que atuação é algo muito pessoal.
Sobre técnicas, a atriz reforçou o que chama de “método do afeto”, ou a capacidade de ser afetada pelas pessoas. Segundo ela, é importante substituir a representatividade pela proporcionalidade, valorizando a individualidade em castings que comportam todos os lugares e aparências. Para Fernanda, o mercado existe, mas é vivo e demanda coragem. E coragem é agir com o coração, colocando afeto e individualidade na própria atuação.
Serviço
55ª edição do Festival de Brasília do Cinema Brasileiro
→ De 14 a 20 de novembro
→ Local: Cine Brasília, com exibições também no Complexo Cultural de Planaltina e de Samambaia
→ Confira a programação completa neste link.
→ Ingressos nas bilheterias.
*Com informações da Secec
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