O documentário “Herzog – O Crime que Abalou a Ditadura” será lançado nesta quinta-feira, 23 de novembro, no YouTube, marcando os 50 anos do assassinato do jornalista Vladimir Herzog. A produção cinematográfica, que detalha o brutal crime que reverberou por todo o regime militar brasileiro, oferece uma análise profunda e emocionante dos eventos que levaram à sua morte, revelando o impacto duradouro na história do país.
Um Olhar Renovado sobre a Tragédia
Produzido pelo Instituto Conhecimento Liberta (ICL), o longa-metragem reconta a trajetória de Vladimir Herzog, um respeitado jornalista, professor e cineasta que foi vítima de tortura e assassinato por agentes da ditadura militar. O filme traz à tona depoimentos comoventes de amigos, colegas de redação e membros da família de Herzog, e estará acessível no canal do ICL no YouTube a partir das 19h.
Os idealizadores do projeto esperam que esses relatos ajudem a elucidar o motivo pelo qual o desaparecimento de Herzog gerou uma profunda comoção nacional, transformando-se em um marco decisivo na batalha pela redemocratização do Brasil. Conforme explicou Antônio Farinaci, jornalista, diretor e roteirista do documentário, em entrevista à Agência Brasil, a principal meta era apresentar essa história, já revisitada inúmeras vezes, sob uma nova perspectiva. Ele afirmou: “A grande preocupação que a gente tinha era fazer isso de uma forma que criasse um interesse novo pela história, que já foi contada muitas vezes. A gente queria trazer um elemento novo.”
Vladimir Herzog, uma das figuras centrais da repressão, nasceu na antiga Iugoslávia e, ao escapar do nazismo, chegou ao Brasil com sua família ainda na infância. A narrativa oficial da ditadura sobre sua morte foi de suicídio, uma farsa que, paradoxalmente, solidificou o caso como um símbolo da resistência e da luta intransigente pela liberdade de imprensa.
A Brutalidade do Regime e Suas Táticas
A diretora executiva de conteúdo do Instituto Conhecimento Liberta, Márcia Cunha, ressalta que, embora a vida de Herzog já tenha sido abordada por diversos ângulos, a atual produção optou por focar especificamente no crime em si. O documentário investiga o período de uma semana antes até uma semana depois do evento, pormenorizando as razões de seu assassinato, os acontecimentos da prisão e as consequências que se seguiram para o jornalista, para o país e para o panorama histórico brasileiro.
Ademais, Cunha enfatiza a relevância histórica dos 50 anos da tragédia. Ela afirma que a escolha desse recorte do crime visa expor as táticas da ditadura, revelando sua capacidade de violência e, ainda mais importante, mostrando como algumas de suas estratégias – como a criação de uma espécie de “gabinete do ódio” para atacar jornalistas e a TV Cultura (chamada de “VietCultura” por uma matéria sobre o Vietnã, rotulada como comunista) – ecoam em comportamentos observados na atualidade, especialmente com o ressurgimento de grupos que defendem o regime militar.
Entre os diversos depoimentos que enriqueceram a reconstituição audiovisual, destacam-se as contribuições dos jornalistas Dilea Frate, Paulo Markun, Rose Nogueira e Sérgio Gomes. Igualmente importantes foram as falas de Ivo Herzog, filho de Vladimir, e de João Batista de Andrade, renomado diretor e produtor de cinema e televisão, roteirista e escritor brasileiro.
Superando Obstáculos: A Memória Visual
Márcia Cunha também revelou as consideráveis dificuldades enfrentadas durante a produção, principalmente devido à escassez de imagens de arquivo da época. Não existiam registros visuais de Herzog em seu trabalho, nem de sua prisão ou de outros momentos cruciais de sua trajetória. Além disso, a passagem de meio século representou um desafio nos depoimentos, pois muitas testemunhas já faleceram ou se encontram em idade avançada.
Contudo, a equipe do documentário transformou essa limitação em uma vantagem criativa, buscando aproximar a narrativa das novas gerações. Para recriar cenas como a chegada dos agentes da repressão na TV Cultura com a intenção de prendê-lo, ou os relatos dos companheiros de cela sobre os gritos e detalhes da tortura, a produção utilizou storyboards. Esses elementos visuais foram desenvolvidos para funcionar como uma espécie de história em quadrinhos, tornando o conteúdo mais acessível e engajador. Conforme Cunha detalhou, “A gente optou por esta narrativa de recriar essa situação dramática de tensão, do enterro, da abordagem, da prisão e da tortura com essa linguagem de quadrinhos e entremeou isso com os depoimentos dos colegas dele de cela que estão vivos, dos amigos e com relatos de pessoas que já morreram, como Dom Paulo [Evaristo Arns].”
As ilustrações dos quadrinhos foram concebidas pela artista ativista Paula Villar, que trabalhou em estreita colaboração com o diretor, traduzindo as narrativas de cada situação em arte visual. O diretor esclareceu que essa abordagem permitiu a recriação de episódios que não possuíam registros imagéticos, principalmente aqueles ocorridos nos “porões da ditadura”, como o DOI-Codi (Destacamento de Operações de Informações – Centro de Operações de Defesa Interna), locais onde não havia permissão para documentação. “A Paula fez uma interpretação desses episódios, mas tudo baseado em depoimentos e naquilo que a gente tem de iconografia disponível,” ele complementou.
Testemunhos Contundentes e o Impacto do Crime
O roteiro do filme foi cuidadosamente elaborado a partir dos depoimentos de pessoas que vivenciaram diretamente os fatos, incluindo testemunhas e colegas de trabalho de Herzog que ainda estão vivos. Farinaci enfatizou a seriedade e a fidelidade da abordagem: “A gente fez tudo muito respeitoso e fiel com os depoimentos, que a gente conseguiu colher das pessoas que estavam lá e foram testemunhas em primeira mão dessa história. Não é alguém contando uma história que ouviu falar. São pessoas que viveram e estiveram presas com ele no DOI-Codi. É uma história muito contundente.”
O diretor ainda acrescentou a gravidade desses testemunhos, afirmando que alguns são “aterrorizantes”, pois incluem relatos de pessoas que ouviram a tortura de Herzog da cela ao lado. Para Farinaci, era crucial que o documentário transmitisse o terror daquela época, com o intuito de alertar as gerações atuais e evitar o equívoco de idealizar ou pedir a volta do regime militar, como tem sido observado em alguns setores da sociedade.
Detalhes Cruéis e a Farsa Desvendada
A diretora do ICL lembra que o crime teve um impacto tão profundo na época que evidenciou as fissuras internas dentro do próprio regime militar, especialmente no que tange à continuidade da ditadura. Márcia Cunha explica que o nome do documentário, “Herzog – O Crime que Abalou a Ditadura”, reflete essa realidade. Ela argumentou que a violência do crime e sua vasta repercussão aprofundaram a disputa entre as linhas “aberturista”, lideradas pelo ex-presidente general Ernesto Geisel e pelo ex-chefe da casa civil general Golbery do Couto e Silva, e a linha “dura” do exército. Desse modo, a tragédia de Herzog contribuiu para que a facção que buscava a abertura democrática prevalecesse, acelerando, assim, o fim da ditadura no Brasil.
Márcia Cunha destaca um momento crucial na história de Herzog que merece ser lembrado. Agentes da repressão foram à TV Cultura, em São Paulo, onde ele trabalhava, para prendê-lo. Entretanto, Herzog pediu para concluir o telejornal e prometeu apresentar-se voluntariamente no DOI-Codi. Ele cumpriu sua palavra; todavia, foi preso, brutalmente torturado e morto no mesmo dia, sem nunca mais sair de lá. Na semana anterior à sua prisão, 11 outros jornalistas já haviam sido detidos, evidenciando uma verdadeira “caça aos jornalistas”.
Outro aspecto marcante da memória de Herzog, minuciosamente explorado no filme, é a infame fotografia que o mostra “enforcado”. Essa imagem foi forjada pelos militares para sustentar a falsa narrativa de suicídio. No entanto, a própria imagem, que exibe Herzog com os pés e joelhos quase tocando o chão, já servia como uma denúncia visual da farsa e da desfaçatez do regime. Cunha enfatiza que a ditadura contava com a impunidade, a ponto de um perito da polícia técnica ter sido quem tirou a foto, que se tornou um dos elementos-chave para desvendar a verdade.
A versão oficial de suicídio nunca convenceu ninguém próximo a Herzog, pois não correspondia ao seu perfil; ele estava bem, assumindo a direção de um canal. Posteriormente, uma autópsia foi realizada pelo legista da ditadura, Harry Shibata, que reiterou a tese de suicídio. No entanto, após uma incansável batalha judicial e a luta de uma vida inteira de Clarice Herzog, foi comprovado que a versão era uma montagem e que a ditadura militar era, de fato, responsável pela morte de Vlado.
Ampliando a Narrativa: O Podcast Complementar
Juntamente com o documentário, o ICL lançará o podcast “Caso Herzog – A foto e a farsa”. Este recurso complementar aprofunda a história da fotografia manipulada, um tema também presente no filme. Márcia Cunha explica que um jovem fotógrafo de 22 anos, recém-formado na polícia técnica, foi o responsável por registrar a cena no DOI-Codi. Curiosamente, essa fotografia, combinada com a incansável luta de Clarice Herzog, inúmeras provas e testemunhos, tornou-se um dos principais fatores para a elucidação do crime. O episódio estará disponível no canal do ICL no YouTube e em todas as plataformas de áudio, com o objetivo de conscientizar as novas gerações sobre a importância desse legado histórico.



