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Evaristo e Gonçalves na Flip: Ficção para reescrever a história negra

Conceição Evaristo e Ana Maria Gonçalves defenderam na Flip a ficção como ferramenta essencial para preencher lacunas e reescrever a história negra do Brasil.
Ficção reescreve história negra
Foto: Rovena Rosa/Agência Brasil

As renomadas escritoras Conceição Evaristo e Ana Maria Gonçalves defenderam, durante a Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), a imprescindível atuação da ficção como um instrumento poderoso para resgatar e reescrever a história negra do Brasil, preenchendo lacunas deixadas por narrativas hegemônicas. Ambas as autoras, figuras centrais na literatura contemporânea, ressaltaram a capacidade da arte literária de preencher vazios históricos e de atuar como um alicerce para a memória coletiva e individual.

A Força da Ficção na Reescrita Histórica

Participando de um debate na 23ª edição da Flip, na Casa da República, Conceição Evaristo enfatizou a relevância da literatura. Ela afirmou que “onde a história e a ciência falharam em destacar os fatos relacionados aos africanos e seus descendentes no Brasil, a literatura intervém com a sua ficção”. Além disso, a escritora apontou a obra “Um defeito de cor”, de Ana Maria Gonçalves, como um exemplo notável dessa premissa, evidenciando como a criação ficcional se torna vital para ocupar esses espaços esquecidos pela historiografia oficial.

Evaristo aprofundou sua reflexão sobre a memória, sugerindo que, no complexo embate entre o esquecimento e a lembrança, a ficção emerge. “Ela surge como uma escolha, e mais do que isso, ela vem para nos salvar”, declarou. Nesse sentido, para a autora, a narrativa ficcional não apenas documenta, mas também confere significado e resiliência a experiências históricas que de outra forma poderiam se perder no tempo.

A Memória que Arde: Luta e Potencialização

Em sua fala, Conceição Evaristo também estabeleceu um paralelo com o título da mesa, “Anotações de um Brasil que arde”, explicando que a memória ancestral, carregada pelos povos escravizados e marginalizados, representa uma “ardência” profunda na construção da identidade da população negra brasileira. Essa “ardência”, conforme a escritora, transcende a dor e se manifesta como um motor para a ação. “Essa ardência que carregamos nos posiciona no campo da luta, no campo da crença e da esperança, e, acima de tudo, no campo da ação”, pontuou Evaristo.

Consequentemente, ela direcionou uma mensagem de incentivo às novas gerações, salientando que o legado de resistência deve continuar a fortalecer a luta contemporânea. “Todo o silenciamento imposto, toda a subalternidade enfrentada por nossas antepassadas, por nossas mães, por nossas avós, tudo isso nos potencializa para estarmos aqui hoje”, reforçou. A escritora, ademais, resgatou a memória de mulheres negras cujas vozes eram subjugadas ao trabalho escravo, forçadas a contar histórias para os filhos dos senhores. “Por isso, tenho reiterado: nossa escrevivência não visa adormecer os da Casa Grande, mas sim despertá-los de seus sonos injustos”, concluiu, reiterando o caráter transformador de sua literatura.

O Romance como Tecido da Memória Coletiva

Por outro lado, Ana Maria Gonçalves, cujo aclamado livro “Um defeito de cor” a levou recentemente a se tornar a primeira mulher negra eleita imortal pela Academia Brasileira de Letras, também foi uma das atrações mais procuradas da Flip. Em sua mesa lotada na Casa Record, ela discorreu sobre a intrincada relação entre ficção e história. “A história negra do Brasil está em constante reconstrução retroativa”, explicou Gonçalves, detalhando que isso ocorre tanto pela ficção, que preenche as lacunas que a história tradicional não abarca, quanto pela descoberta de novos documentos que esclarecem antigas dúvidas.

A autora ressaltou o processo contínuo de “reescrever e revisitar a história”, adicionando “novos capítulos e camadas” a uma identidade que ainda está em formação. Por exemplo, Gonçalves mencionou o achado de documentos relacionados à vida de Luiza Mahin, mãe de Luiz Gama e uma das inspirações para sua obra. “Estou extremamente curiosa para analisar essa documentação e verificar o que se alinha ou não com a história que criei para ela, a partir da minha pesquisa”, afirmou. A escritora descreveu seu romance como uma vasta “colcha de retalhos”, onde a protagonista, Kehinde, embora inspirada em Mahin, é composta por vivências de inúmeras outras mulheres negras, baseadas em uma profunda pesquisa histórica. “A trajetória de Kehinde é tecida a partir das histórias de pelo menos outras 300 mulheres. Para isso, mergulhei em jornais, revistas e arquivos, investigando as experiências de mulheres que viveram nos mesmos locais e períodos que Luiz Gama indicava para sua mãe”, finalizou Gonçalves, sublinhando a dedicação à veracidade ficcional.

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