Especialistas em segurança pública emitem um alerta veemente sobre os riscos inerentes à retórica empregada por diversos governadores brasileiros no combate ao crime organizado. Termos como “Consórcio da Paz”, “narcoterrorismo” e “guerra às drogas” são criticados por sua potencial contribuição para a letalidade policial, por ameaçarem a democracia e, ademais, por abrirem portas para interferências internacionais. A análise de sociólogos e cientistas políticos revela que, em vez de solucionarem a criminalidade, tais discursos podem mascarar ineficiências e justificar abordagens autoritárias, com graves consequências para a sociedade brasileira.
Consórcio da Paz: Uma Iniciativa Repleta de Controvérsias
Em meio a operações policiais de grande escala, como as recentemente realizadas nos complexos do Alemão e da Penha, no Rio de Janeiro, governadores alinhados a Cláudio Castro (RJ) estabeleceram o “Consórcio da Paz”. Este projeto, conforme anunciado, visa integrar esforços contra o crime organizado em nível nacional. No entanto, Ignacio Cano, sociólogo e professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), questiona abertamente a denominação da iniciativa. Ele aponta que, estrategicamente, o nome busca inverter o sentido de operações que resultaram em alta mortalidade, como a “Operação Contenção”, que contabilizou 121 óbitos. Cano afirma, portanto, que a proposta deveria, em vez disso, ser intitulada “Consórcio da Morte”, dado o elevado número de vidas perdidas, e critica a promoção da letalidade policial por muitos governos de direita. Além de Castro, integram o consórcio Tarcísio de Freitas (SP), Romeu Zema (MG), Jorginho Mello (SC), Eduardo Riedel (MS), Ronaldo Caiado (GO) e Ibaneis Rocha (DF).
A Controvérsia em Torno do Termo ‘Narcoterrorismo’
Outro termo que tem gerado intenso debate é “narcoterrorismo”, frequentemente utilizado por governadores como Castro, Tarcísio e Zema para descrever facções criminosas, especialmente as de maior poder em estados como Rio de Janeiro e São Paulo. Sociólogos, cientistas políticos e especialistas em segurança pública, consultados pela Agência Brasil, identificaram o uso político e simbólico desse vocabulário nos discursos oficiais. Jacqueline Muniz, antropóloga e cientista política da Universidade Federal Fluminense (UFF), argumenta que classificações como “narcoterrorismo” e “Estado paralelo” servem para encobrir a incompetência e o oportunismo político das autoridades. Ademais, ao empregar a tese de “narcoterrorismo”, líderes políticos buscam justificar a demanda por mais poder, recursos e orçamentos, minimizando a necessidade de prestar contas à sociedade.
Para Ignacio Cano, a expressão é conceitualmente imprecisa. Ele explica que o terrorismo está tipicamente ligado a objetivos políticos e ao uso indiscriminado de violência contra civis para alcançá-los. Um “narcoterrorista”, por outro lado, teria como principal motivação o lucro, não a política, configurando assim uma contradição de termos. Conforme a Lei nº 13.260 de 2016, o terrorismo no Brasil é definido por atos cometidos por razões de xenofobia, discriminação racial, étnica ou religiosa, com o propósito de instigar terror social generalizado. Facções de tráfico de drogas, portanto, são legalmente classificadas como organizações criminosas, e o governo federal, por meio do ministro da Justiça e Segurança Pública, Ricardo Lewandowski, mantém essa interpretação. Contudo, o Projeto de Lei 724/25, de autoria do deputado Coronel Meira (PL-PE), busca expandir o conceito de terrorismo para incluir o tráfico de drogas, já tendo sido aprovado na Comissão de Segurança Pública da Câmara dos Deputados e aguardando análise da Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJ).
Pressão Internacional e os Riscos à Democracia Brasileira
A utilização do termo “narcoterrorismo” no Brasil também é impulsionada por uma crescente pressão de políticos de direita no cenário internacional. Recentemente, os governos da Argentina, sob Javier Milei, e do Paraguai, com Santiago Peña, categorizaram o PCC e o Comando Vermelho como organizações terroristas. Inclusive, os Estados Unidos sugeriram ao Brasil adotar a mesma medida durante uma visita de sua comitiva em maio deste ano. Especialistas em segurança pública interpretam essa pressão como um alinhamento político com forças externas, o que, por sua vez, desloca o debate da esfera policial para a geopolítica. Segundo eles, a adoção do termo “narcoterrorista” no país poderia fragilizar a democracia e aumentar os riscos de interferências internacionais. Jonas Pacheco, coordenador de pesquisa da Rede de Observatórios da Segurança, adverte que essa retórica facilita a intervenção dos Estados Unidos no território brasileiro, evocando temores históricos pós-11 de setembro e se inserindo numa lógica de dominação da América Latina. Ademais, Ignacio Cano observa que, em outros contextos, como em El Salvador e Equador, o termo “terrorismo” é usado para justificar execuções sumárias e mitigar garantias processuais, embora seja importante ressaltar que nenhuma lei antiterrorista legaliza tais execuções.
A Perigosa Retórica da ‘Guerra às Drogas’
Outra categoria semântica muito comum entre as autoridades estaduais é a ideia de “guerra”. Essa retórica sugere que as polícias militares enfrentam conflitos análogos aos de zonas de guerra no Leste Europeu, África ou Oriente Médio. No entanto, cientistas políticos e sociólogos se opõem categoricamente a essa terminologia devido às suas profundas consequências simbólicas e materiais. Jonas Pacheco destaca que a pauta da “guerra” valida ações que “barbarizam todo um território”, direcionando o confronto não aos financiadores do crime, mas sim aos moradores mais vulneráveis das favelas, geralmente pobres e negros. Ele enfatiza que o propósito da segurança pública é gerar segurança e preservar vidas, não matar, e que o uso da força deve sempre respeitar as normativas legais. Ignacio Cano, por sua vez, alerta que autorizar a polícia a agir sem controles e fiscalização do Ministério Público coloca toda a sociedade em risco, não apenas os moradores de comunidades. Portanto, Jacqueline Muniz analisa que essa narrativa de “guerra contra o crime” não visa combater efetivamente a criminalidade, mas sim produzir repressão e espetáculo. Ela complementa que essa abordagem representa um projeto autoritário, onde a insegurança é transformada em política pública para fidelizar a população pelo medo, levando as pessoas a abrir mão de garantias individuais e coletivas em troca de uma falsa proteção que, em última instância, pode se converter em tirania.



