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Escritor GauZ’ compara Gaza à colonização e diz: ‘Brasil foi Gaza’

Escritor marfinense GauZ’, em sua primeira visita ao Brasil, comparou a colonização do país à situação de Gaza, afirmando que "Brasil foi Gaza".
GauZ Gaza Brasil colonização
Foto: Rovena Rosa/Agência Brasil

Em sua primeira visita ao Brasil, o renomado escritor marfinense Armand Patrick Gbaka-Brédé, artisticamente conhecido como GauZ’, traçou um paralelo contundente entre a colonização do país sul-americano e a dramática situação vivida hoje em Gaza. Segundo ele, “o Brasil foi Gaza”, uma declaração que ecoa as profundas cicatrizes deixadas por processos colonizatórios e o deslocamento de populações.

Uma Nova Visão do Brasil: De Fantasia à Realidade Social

Ao desembarcar em terras brasileiras, GauZ’ confessou que sua percepção inicial do país, construída à distância, era uma fantasia. No entanto, sua chegada se revelou “espetacular”, conforme ele descreveu à Agência Brasil. Para muitos africanos, a imagem do Brasil está intrinsecamente ligada ao futebol; entretanto, para GauZ’, a riqueza cultural vai além, abraçando a música, a forte presença da cultura negra e a ideia da miscigenação. Ele revelou que, por um longo período, imaginou o Brasil cinquenta anos à frente do resto do mundo no que tange à mistura populacional.

Longe de qualquer ingenuidade ou romantismo, GauZ’ reconhece que a complexa história da miscigenação brasileira teve um início marcado pela violência e imposição. Não obstante, ele enfatiza que esse processo de mistura humana é inevitável e continuará a evoluir. O escritor vislumbra um futuro onde, em cem anos, o mundo será naturalmente como o Brasil, com pessoas se misturando não por força ou violência, mas por vontade e humanismo, buscando construir algo novo. Suas impressões iniciais, aliás, foram confirmadas de forma palpável.

Posteriormente, o autor marfinense salientou que a barreira social mais evidente que encontrou no Brasil foi a gritante desigualdade. Ademais, o que mais o surpreendeu foi a constatação de que, no país, há brancos em situação de pobreza vivendo ao lado de negros pobres, um cenário que ressalta a complexidade e a profundidade das questões sociais locais.

A História em Perspectiva: Escravidão e a Criação da África

GauZ’ veio ao Brasil acompanhado de sua esposa e filha, primeiramente para participar da Festa Literária Internacional de Paraty (Flip). Em seguida, ele se dirigiu a Salvador para a Festa Literária Internacional do Pelourinho (Flipelô), onde conversou com a imprensa sobre sua obra, bem como sobre temas cruciais como escravidão e imigração. Ele pontuou que, no período em que a escravidão foi introduzida no Brasil, a África, como conceito unificado, ainda não existia; havia, sim, uma pluralidade de povos como os iorubás e malinquês.

O escritor argumenta que foi precisamente a brutalidade da escravidão – sua violência moral e cultural – que paradoxalmente deu origem à ideia de África. Além disso, ele destaca que o navio negreiro, embora um instrumento de horror, foi o primeiro local onde essas diversas culturas africanas foram forçadas a se misturar, estabelecendo um ponto inicial para uma nova identidade. Essa perspectiva histórica oferece uma compreensão profunda das raízes da diáspora e da complexidade da identidade africana e afro-brasileira.

Gaza e a Herança da Colonização: Um Paralelo Histórico

Na entrevista, GauZ’ estabeleceu uma comparação incisiva entre o fenômeno da escravidão e a atual situação dos palestinos em Gaza. Ele sublinhou que as vítimas de ambos os momentos históricos compartilham uma causa comum: a colonização. Segundo sua análise, o cerne do problema em Gaza reside no deslocamento de populações europeias para uma região onde, em sua visão, não deveriam estar, sendo essas pessoas, paradoxalmente, vítimas da própria violência europeia. Consequentemente, ele defende que a solução para Gaza não se encontra em Israel, mas sim nas nações europeias e ocidentais, como Espanha, França, Estados Unidos, Alemanha e Polônia.

De forma enfática, GauZ’ convocou cada pessoa branca a refletir sobre a semelhança entre os eventos em Gaza e o que ocorreu nas Américas durante a colonização. Ele afirmou que “a América foi Gaza, o Brasil foi Gaza, a Argentina foi Gaza”, instigando a todos a lembrarem-se disso para compreenderem o verdadeiro sentido de justiça. A principal diferença, ele ressalta, é que atualmente há uma consciência global e somos testemunhas diretas dos acontecimentos, algo inimaginável no passado. O escritor criticou a visão ainda presente na França sobre as “benesses” da colonização, refutando a ideia de que tais eventos são apenas passado. Pelo contrário, ele argumenta, Gaza é a própria materialização da colonização contemporânea.

A solução para essa problemática, defendeu o autor, reside no conceito jurídico de “paralelismo das formas”. Essa ideia sugere que a mesma entidade que toma uma decisão é a única que pode revogá-la ou solucioná-la. Dessa forma, GauZ’ sustenta que este é o momento crucial para a Europa e o Ocidente assumirem a responsabilidade pelo que criaram no passado, devendo agora ser os protagonistas na busca por uma resolução. Em outras palavras, não é aceitável que outro povo arque com as consequências dos “pecados” históricos da Europa.

“De Pé, Tá Pago”: Imigração, Capitalismo e Uma Nova Literatura

Durante uma mesa de debate na Casa Motiva, em Salvador, GauZ’ abordou seu primeiro livro, “De Pé, Tá Pago”, que foi traduzido e lançado no Brasil após onze anos. Nesta obra, ele explora a realidade dos imigrantes africanos em Paris, frequentemente relegados a trabalhos braçais e mal remunerados, onde o corpo é mais valorizado que a intelecto. O livro nasceu de anotações feitas enquanto trabalhava como segurança em uma loja da Sephora na capital francesa. GauZ’ ilustra essa realidade com a “relação quase matemática entre três parâmetros: Pigmentação de Pele, Situação Social e Geografia (PSG)”.

Para a plateia, o autor explicou que, na França, é consideravelmente mais fácil para um homem negro se tornar um vigia ou segurança do que um médico. Ele descreve a posição do segurança como uma “posição privilegiada”, pois permite observar a todos enquanto permanece despercebido, quase como um “estudo etnológico”. Frequentemente, brancos se acostumaram a ver negros como meras “formigas”, porém, nesta inversão, o homem negro tem a oportunidade de enxergar os brancos e documentar seus “delírios de consumo”.

Além de mergulhar em temas como imigração e racismo, a obra de GauZ’ tece uma crítica profunda ao capitalismo global. Ele questiona a concepção de segurança: ao ver um segurança em uma loja, o que realmente vem à mente? A função seria impedir roubos ou oferecer proteção? Segundo o escritor, “definitivamente, nada disso”. A ideia de segurança, argumenta, é uma venda fabricada a partir da criação artificial da ideia de perigo. A sociedade capitalista, portanto, fabrica a sensação de insegurança na mente das pessoas para justificar a necessidade de uma “proteção” que ela mesma oferece.

Para GauZ’, tudo isso se resume a um “teatro” concebido pelo capitalismo. O homem negro na frente da loja não possui poder policial real, e o crime é a exceção, não a regra. Ele argumenta que o verdadeiro propósito das propagandas é induzir o consumo, transformando o ato de gastar dinheiro ganho com trabalho em um destino. Em síntese, o escritor conclui que o destino de “consumir” é a essência do capitalismo.

Uma Nova Estrutura Narrativa: Humor e Inteligência

Ao se dirigir ao público, GauZ’ (pronunciado “gôs”) revelou que seu livro adota um formato e uma estrutura inovadores, distanciando-se do romance tradicional. Ele orgulhosamente classifica sua obra como “uma nova literatura”. Essa abordagem literária inovadora se vale amplamente da ironia e do humor, características que o autor empregou também durante sua participação na Casa Motiva. Ele compartilhou que cada riso que provoca na plateia é um momento de compartilhamento de inteligência. A risada, para ele, é um indicativo de que duas pessoas compreenderam um conceito comum, representando o que há de mais humano no mundo. A capacidade de seu livro de fazer pessoas rirem em diversos países, como Noruega, Croácia e Brasil, atesta a universalidade dessa inteligência compartilhada, um entendimento que, segundo ele, nossos ancestrais já possuíam: onde há inteligência, há humor.

A programação da Flipelô foi encerrada neste domingo, e mais detalhes sobre o evento estavam disponíveis em seu site oficial.