Um terço dos motociclistas que se envolvem em acidentes de trânsito no Brasil enfrenta sequelas permanentes, conforme um estudo divulgado recentemente pela Sociedade Brasileira de Ortopedia e Traumatologia (SBOT). A pesquisa, que consultou 95 líderes de serviços de residência em ortopedia do país, acende um alerta para o que a entidade descreve como uma verdadeira “epidemia” de sinistros envolvendo motocicletas. Os dados revelam um cenário preocupante, com impactos significativos na vida das vítimas e no sistema de saúde nacional.
De acordo com as informações coletadas, os hospitais recebem, em média, 360 vítimas de trânsito mensalmente nos últimos seis meses, o que representa mais de dez internações diárias. Desse total, dois terços são motociclistas ou seus passageiros. Após a alta hospitalar, 56,7% dessas vítimas experimentam poucas sequelas, entretanto, um alarmante percentual de 33,9% passa a conviver com danos permanentes. Além disso, 82% relatam o desenvolvimento de dor crônica. Lesões mais graves são igualmente frequentes: 69,5% das vítimas ficam com deformidades, 67,4% sofrem de déficit motor e 35,8% necessitam de amputações.
A SBOT apresentou este estudo durante um fórum realizado na Câmara dos Deputados, como parte integrante da campanha “Na moto, na moral”, que tem como propósito primordial diminuir a mortalidade de motociclistas nas vias. O presidente da SBOT, Paulo Lobo, reconheceu que a motocicleta funciona como um vital meio de transporte e sustento para muitos brasileiros. No entanto, ele enfatizou que o objetivo da campanha e da pesquisa é promover uma maior segurança viária, pois, em suas palavras, o país está “vivendo uma epidemia de sinistros com motos”.
O Testemunho de uma Vítima
Para ilustrar a gravidade da situação, a história de Jéssica Santos, de 29 anos, destaca os desafios enfrentados pelas vítimas. Em novembro do ano passado, a carioca voltava para casa na garupa de uma moto quando colidiu frontalmente com outro veículo, a poucos minutos de seu destino. O impacto a arremessou no asfalto, resultando em graves ferimentos na pelve, fraturas na bacia e na mão esquerda.
Após uma cirurgia de emergência no Hospital Municipal Salgado Filho, no Rio de Janeiro, e três dias de internação, Jéssica foi transferida para o Instituto Nacional de Traumatologia e Ortopedia (Into). Quase um ano após o ocorrido, ela ainda lida com a mobilidade reduzida da mão e dores persistentes na bacia. “Hoje em dia, faço fisioterapia para poder recuperar os movimentos. Recuperei cerca de 70%, mas ainda não tenho força na mão. Ainda sinto bastante dor na bacia, sinto dores na pelve, na virilha e no cóccix, onde tenho um parafuso de titânio. E tenho uma colostomia que ainda não posso reverter”, descreve Jéssica, evidenciando a longa e árdua jornada de recuperação.
Perfil das Vítimas e Impacto Cirúrgico
A pesquisa também traça um perfil detalhado das vítimas de acidentes com motocicletas atendidas pelos serviços de ortopedia. A grande maioria, 72,8%, são homens, e 40,7% estão na faixa etária entre 20 e 29 anos. Desse grupo, 64% eram condutores das motocicletas, 23,2% eram passageiros e 10,9% eram pedestres. Um dado alarmante é que 29,2% das vítimas haviam ingerido álcool e 16% usaram outras drogas antes do sinistro. Em relação aos tipos de acidentes, 47,1% foram colisões com automóveis, enquanto 44,5% consistiram em quedas.
Consequentemente, a demanda por procedimentos cirúrgicos é altíssima. Os profissionais entrevistados relatam que os serviços de ortopedia realizam, por mês, uma média de 45 cirurgias de baixa complexidade, 58 de média e 43 de alta complexidade em vítimas de motocicletas. Essa sobrecarga tem um impacto direto na rotina hospitalar. Nos últimos seis meses, por exemplo, os acidentes de trânsito foram a principal causa do adiamento de, em média, 18 cirurgias eletivas mensais, realizadas para atender casos urgentes. Ademais, até mesmo oito cirurgias de emergência foram canceladas por mês, em média, para priorizar os pacientes vítimas de sinistros de trânsito.
Ainda assim, a maioria das vítimas é operada em menos de uma semana (60%) e permanece internada por menos de sete dias após a cirurgia (71,6%). Em contrapartida, um percentual significativo de 31% aguarda entre 7 e 15 dias pela cirurgia, e 8% esperam por mais de 15 dias. No período pós-operatório, 16,8% permanecem até 15 dias hospitalizados e 11,6% ficam entre 15 e 30 dias em leitos. A complexidade dos ferimentos exige cuidados intensivos, com 43,2% dos pacientes necessitando de cuidados de média complexidade e 32,6% de alta complexidade.
A Complexidade das Lesões
O ortopedista Marcos Musafir, que apresentou o estudo, destacou a gravidade das lesões atuais. “As lesões traumáticas estão mais complexas. Não são mais simples fraturas, são realmente explosões de articulações e poli fraturados”, explicou. Mais da metade das lesões (51,4%) afeta os membros inferiores, ao passo que um quinto dos pacientes também sofre lesões nos membros superiores (22,8%) e na coluna vertebral (22,8%). Devido à natureza dos acidentes, frequentemente com ferimentos abertos e expostos, 6,5% dos casos desenvolvem infecções pós-operatórias e 12,9% exigem reinternação.
Propostas e Desafios para a Segurança Viária
Diante desse cenário alarmante, diversas propostas estão em discussão para mitigar os riscos. Marco Antônio Motta, coordenador de Engenharia da Secretaria Nacional de Trânsito (Senatran), informou que um programa nacional de segurança para motociclistas está em desenvolvimento, e sugestões são aceitas até 29 de setembro pela Plataforma Brasil. Além disso, um projeto experimental de “faixas azuis” exclusivas para motociclistas está em curso em 50 trechos de cinco cidades (São Paulo, Santo André, São Bernardo do Campo, Salvador e Recife) até 31 de março do próximo ano. A Senatran avaliará os resultados para propor uma resolução ao Contran, permitindo que outros municípios adotem a medida.
Leonardo Vilela, representante do Conselho Nacional dos Secretários Estaduais de Saúde (Conass), enfatizou a urgência de reduzir o impacto dos sinistros. Ele defendeu a necessidade de diminuir os incentivos fiscais para a produção de motocicletas e de tornar o processo de habilitação mais acessível e barato. Vilela destacou o enorme prejuízo, que vai além das vidas e sequelas humanas, abrangendo danos materiais, a perda de produtividade dos acidentados e os custos para os sistemas de saúde e previdência social. “Causa espanto que a motocicleta, que é o grande responsável por esses sinistros, seja subsidiada”, ponderou.
Em contrapartida, Marcelo Matos, diretor-executivo do Sindicato dos Empregados Motociclistas do Estado do Rio de Janeiro (Sindmoto-RJ), defende a ampliação de campanhas de conscientização sobre segurança e a garantia de direitos para os motociclistas de aplicativos, que frequentemente trabalham sem vínculos empregatícios. Ele observa que, com a chegada dos aplicativos de entrega (a partir de 2014) e de mototáxi (a partir de 2020), houve um expressivo aumento da frota de motocicletas e do número de trabalhadores plataformizados. Matos, que é motociclista há 34 anos e hoje, aos 55, sofre com dores crônicas, expressou preocupação com a nova geração de trabalhadores, que enfrenta jornadas extenuantes sem direito a férias ou seguridade social, tornando-os ainda mais vulneráveis a lesões e acidentes.
Ele alerta para a migração de trabalhadores sem qualificação ou habilitação para a atividade, muitos dos quais sequer contribuem como microempreendedores individuais. “Os jovens estão ficando sequelados e sem direito a nada. E quem segura? É a família, é o amigo mais próximo. O cenário é muito triste, e o problema é crescente. O poder público precisa tomar uma posição enérgica quanto a isso”, concluiu Matos, reforçando o apelo por intervenções mais robustas para proteger essa categoria e a população em geral.



