Dona Zica, como é carinhosamente conhecida Anazir Maria de Oliveira, personifica a incansável batalha por direitos e igualdade. Aos 92 anos, sua trajetória a transformou de uma criança trabalhadora doméstica em uma líder influente, marcando presença desde a fundação de sindicatos até a Assembleia Constituinte.
Em Vila Aliança, bairro da zona oeste do Rio de Janeiro, a casa de Dona Zica permanece um ponto de referência. A porta sempre aberta, em meio ao vai e vem de crianças, simboliza o acolhimento e a liderança comunitária que ela exerce no local, contribuindo para a urbanização do bairro. Além disso, Dona Zica coordena a Pastoral Afro-Brasileira da Arquidiocese do Rio de Janeiro, demonstrando seu engajamento social e religioso contínuo.
Dona Zica enfatiza a importância do engajamento dos jovens em movimentos sociais, a fim de ampliar o conhecimento sobre a sociedade e construir um futuro com mais esperança. Para ela, a luta coletiva, impulsionada pelas igrejas, é fundamental para a conquista de direitos.
A trajetória de uma líder: de Manhumirim ao Rio de Janeiro
Nascida em Manhumirim, Minas Gerais, a jornada de Dona Zica a levou a conquistar espaços importantes na luta por direitos. Na década de 1980, ela foi uma das lideranças que fundaram o Sindicato dos Trabalhadores Domésticos do Município do Rio de Janeiro, a Central Única dos Trabalhadores (CUT) e o Partido dos Trabalhadores (PT). Contudo, a causa das trabalhadoras domésticas sempre ocupou um lugar central em sua militância, afinal, foi a profissão que exerceu desde a infância.
Dona Zica iniciou sua trajetória no trabalho doméstico aos 9 anos, chegando a trabalhar por três meses sem receber salário. Atualmente, o trabalho doméstico remunerado para menores de 17 anos é proibido, sendo considerado uma das piores formas de trabalho infantil devido aos riscos de violência e lesões. Aos 11 anos, Dona Zica mudou-se para o Rio de Janeiro, acompanhando sua mãe e um irmão em busca de melhores condições de vida, após perder nove irmãos devido à falta de assistência em sua cidade natal.
Em junho de 2025, Dona Zica celebrou seus 92 anos, coincidindo com o décimo aniversário da Lei Complementar 150, que regulamentou os direitos assegurados pela PEC das Domésticas. Entre esses direitos, destacam-se o Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS), o seguro-desemprego, o auxílio-creche, o salário-família, o adicional noturno, a indenização por demissão sem justa causa e o pagamento de horas extras.
A luta por direitos básicos: o descanso semanal remunerado
A luta de Dona Zica, entretanto, precede essa legislação. Anteriormente, as empregadas domésticas sequer tinham direito a folga semanal remunerada. “Até 2013, não tínhamos uma lei que garantisse o descanso semanal. Era um benefício que, se os patrões quisessem, davam; se não quisessem, não”, relembra Anazir.
Dona Zica na Constituinte: em defesa dos direitos das domésticas
Na década de 1980, Dona Zica defendeu o direito ao descanso no Congresso Nacional, enfrentando resistência do deputado Amaral Neto, que alegava a necessidade de ser servido em casa nos finais de semana. Dona Zica e suas companheiras responderam que ele jamais receberia outro voto de uma empregada doméstica.
Durante a Assembleia Constituinte de 1988, Dona Zica lutou para que as domésticas fossem reconhecidas como uma categoria profissional. Liderando a Associação de Trabalhadoras Domésticas, que se transformou no Sindicato dos Domésticos do Rio, ela viajava de ônibus para Brasília, conciliando o trabalho no Leblon com as articulações políticas na capital federal. Graças à nova Constituição, as domésticas conquistaram o direito a férias remuneradas de 30 dias, 13º salário e aviso prévio.
O legado de Dona Zica: inspiração para novas gerações
Para Maria Izabel Monteiro, atual presidenta do sindicato, Dona Zica representa uma figura fundamental na defesa dos direitos sociais e humanos das pessoas menos favorecidas. Sua atuação pioneira é um exemplo a ser seguido na busca por uma sociedade mais justa e igualitária.
Alianças e avanços: o papel da Igreja e do movimento feminista
Em entrevista à Agência Brasil, Dona Zica ressaltou a importância do apoio da Igreja Católica, que ofereceu suporte às domésticas por meio de pastorais, e do movimento feminista, que contribuiu para fortalecer a luta por direitos. “A gente deu força para elas e elas nos deram força também. Adquirimos experiência na relação, pela trajetória de reivindicação que elas tinham acumulado”, afirmou Dona Zica.
Após trabalhar como lavadeira e passadeira por 40 anos, Dona Zica voltou a estudar depois dos 40 anos, concluindo duas faculdades: pedagogia e serviço social, esta última aos 83 anos. Ao longo de sua trajetória, ela transformou empregadoras em aliadas, que apoiaram suas atividades. Além disso, encontrou em seu esposo, Jair Benedito de Oliveira, um companheiro que a incentivava em suas lutas políticas.
Os desafios persistentes: a luta pelas diaristas e a fiscalização do trabalho
Apesar dos avanços conquistados, Dona Zica defende a inclusão das diaristas na lei, uma vez que seus salários e contribuições previdenciárias são mais baixos e vulneráveis. Ela também enfatiza a importância da carteira de trabalho e cobra fiscalização para combater a informalidade, o trabalho doméstico escravo e infantil.
Segundo dados do IBGE de 2022, o Brasil possui 6 milhões de empregados domésticos, sendo que seis em cada dez são mulheres negras. No entanto, apenas três em cada dez contribuem para a previdência, e somente 24,7% possuem carteira assinada. A categoria também não tem direito ao abono salarial e recebe apenas três das cinco parcelas do seguro-desemprego.
Em suma, a trajetória de Dona Zica é um exemplo de luta, perseverança e compromisso com a justiça social. Sua história inspira e motiva a seguir em frente na busca por um futuro com mais igualdade e dignidade para todos.