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Doce Amargo: HQ detalha impacto humano de Mariana em Valadares 10 anos depois

Há 10 anos da tragédia de Mariana, o quadrinista João Marcos Mendonça lança "Doce Amargo", HQ que detalha o impacto humano do desastre em Governador Valadares.
Impacto humano Mariana Valadares
Foto: Ilustração João Marcos Mendonça/Divulgação

Dez anos após o trágico rompimento da barragem em Mariana, Minas Gerais, o artista gráfico João Marcos Mendonça apresenta sua nova obra, “Doce Amargo”. Lançada pela editora Nemo, esta graphic novel com roteiro e arte do próprio autor se debruça sobre o impacto humano do desastre em Governador Valadares, uma das cidades diretamente afetadas pela torrente de lama tóxica que desceu o Rio Doce. A catástrofe, que completa uma década em 5 de novembro, deixou um rastro de destruição, arruinando famílias, devastando comunidades e poluindo ecossistemas fluviais por onde passou.

A Tragédia de Mariana e o Impacto Local

O desastre de Mariana não apenas ceifou vidas e transformou paisagens; ele também alterou profundamente a vida em diversas localidades mineiras. Governador Valadares, situada no Vale do Rio Doce, encontrava-se a 328 quilômetros de Mariana, mas sua conexão vital com o Rio Doce a colocou na linha de frente dos efeitos da tragédia. Ademais, o rio, que tradicionalmente serve como principal fonte de abastecimento hídrico para a cidade, tornou-se o veículo da destruição. Assim, dias após o rompimento da barragem, a lama carregada de rejeitos minerais alcançou Valadares, instaurando um cenário de caos e incerteza para seus habitantes.

O Cotidiano Interrompido: Antes e Depois da Lama

Curiosamente, a crise hídrica já era uma realidade em Governador Valadares semanas antes da catástrofe de Mariana. A cidade, já enfrentando um racionamento de água devido a um prolongado período de seca, dependia de caminhões-pipa para suprir parte de suas necessidades. Entretanto, a chegada da lama tóxica ao Rio Doce transformou um problema preexistente em uma emergência de proporções alarmantes. “Doce Amargo” inicia sua narrativa precisamente neste ponto, detalhando como a questão da água se tornou o epicentro das preocupações dos valadarenses, cujas vidas foram subitamente viradas de cabeça para baixo.

A Voz Humana por Trás dos Quadrinhos

João Marcos Mendonça, junto com sua família, assume o papel de protagonista em “Doce Amargo”, guiando os leitores através das adversidades enfrentadas pela população. O autor revela que, ao presenciar a chegada da lama em Valadares, sentiu a necessidade de registrar os acontecimentos. Ele começou a documentar tudo como um diário, percebendo que “estávamos vivendo algo histórico”. Segundo Mendonça, a imagem de caminhões do Exército distribuindo água na cidade foi um momento decisivo, evocando “um cenário de guerra” e solidificando sua decisão de eternizar esses momentos em sua arte. Dessa forma, as anotações iniciais evoluíram para o roteiro e os desenhos que compõem o álbum.

Do Macro ao Micro: A Perspectiva Única de “Doce Amargo”

Enquanto a mídia tradicional, como emissoras de TV, rádios e jornais, focava nos aspectos macroeconômicos e nas grandes estatísticas da tragédia, “Doce Amargo” oferece uma imersão íntima na realidade dos moradores de Governador Valadares. O álbum se destaca por apresentar as dificuldades cotidianas, os dramas pessoais e a resiliência da comunidade de uma perspectiva profundamente humana. João explica que seu objetivo era “contar o que eu estava vivendo” e “mostrar o que não tinha nas TVs e na mídia”. Para ele, desastres de tal magnitude tendem a focar em “números, cifras”, e sua obra se propõe a registrar “a noção humana da tragédia”, descrevendo a situação como “quase um apocalipse” pessoal e coletivo.

Arte e Didatismo: Uma Narrativa Acessível

Com um estilo de desenho dinâmico e influências que remetem ao trabalho do mestre Ziraldo, “Doce Amargo” foi concebido para um público jovem-adulto. Contudo, a clareza e a simplicidade da narrativa garantem que a obra seja compreendida por leitores de todas as idades, inclusive crianças. O quadrinista emprega uma abordagem didática, desdobrando os acontecimentos passo a passo para que a dimensão do problema seja facilmente assimilada. Portanto, a arte e o roteiro trabalham em conjunto para criar uma experiência acessível e profundamente instrutiva, onde uma informação se encadeia na outra de maneira direta e compreensível.

Consequências Vivas: A Degradação Ambiental e Social

A graphic novel ilustra vividamente as severas consequências da degradação ambiental, especialmente no que tange à água. A poluição do Rio Doce e a impossibilidade de usá-lo para abastecimento desencadearam uma série de problemas sociais e sanitários. O leitor é confrontado com cenas de peixes mortos, o mau cheiro onipresente, a luta diária para conseguir água potável, as restrições ao uso da descarga dos banheiros e as dificuldades básicas de higiene pessoal. Em suma, “Doce Amargo” não apenas narra, mas faz o leitor sentir o peso da crise que se abateu sobre Governador Valadares, revelando o impacto multifacetado de um ecossistema comprometido.

A Jornada Criativa e o Foco Narrativo

Criar “Doce Amargo” foi uma jornada árdua para João Marcos Mendonça. O autor confessa que foi “difícil reviver tudo aquilo para fazer a HQ”. O processo de finalização do roteiro levou nove anos, período durante o qual ele teve que fazer escolhas cuidadosas sobre o que incluir na narrativa. Consequentemente, João optou por focar no primeiro ano da crise, oferecendo um recorte que capta a intensidade e a confusão inicial. Essa decisão permitiu ao quadrinista dar aos leitores “uma ideia de como foi o primeiro ano” da experiência em Governador Valadares, concentrando-se nos eventos mais cruciais e impactantes. O álbum, por conseguinte, funciona como um verdadeiro registro jornalístico em quadrinhos, detalhando a dimensão da vida dos valadarenses naquele período.