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Dez anos da Chacina de Osasco: Mãe de vítima descreve ‘hospital de guerra’

Dez anos após a Chacina de Osasco, que vitimou 19 pessoas, a mãe de um dos jovens mortos relembra o horror e luta por justiça contra policiais.
Dez anos Chacina Osasco
Foto: Paulo Pinto/Agência Brasil

Dez anos após o trágico episódio que ficou conhecido como Chacina de Osasco, Barueri e Itapevi, uma das piores páginas da violência em São Paulo, Zilda Maria de Jesus, mãe de uma das 19 vítimas, relembra o horror vivenciado e prossegue em sua incansável batalha por justiça contra policiais envolvidos. O massacre, ocorrido em 13 de agosto de 2015, deixou um rastro de dor e luto que ainda ecoa na memória das famílias.

A Memória Viva de Fernando

Na simples residência de Zilda Maria de Jesus, localizada no Jardim Mutinga, em Barueri, uma fotografia ocupa um lugar de destaque na estante da sala. A imagem revela Fernando Luiz de Paula, um jovem negro, ostentando um largo sorriso sob um boné, vestido com uma camisa listrada do São Paulo Futebol Clube. Fernando, carinhosamente apelidado de “Abuse” pela semelhança com o bailarino Sebastian, da C&A, era uma figura querida por todos, conforme a mãe descreve com emoção. Curiosamente, a parede amarela ao fundo da foto foi pintada pelo próprio Fernando, pouco antes de sua vida ser brutalmente interrompida.

A Brutal Noite de 2015

O fatídico evento que tirou a vida de Fernando e de outras dezoito pessoas desenrolou-se entre 21h e 23h daquela noite de agosto. Os crimes se espalharam por Osasco, Barueri e Itapevi, abrangendo um raio de sete quilômetros. No total, quinze mortes foram registradas em Osasco, três em Barueri e uma em Itapevi, além de sete feridos. Ademais, as investigações subsequentes apontaram que os assassinatos foram praticados por policiais militares e tinham como motivação uma retaliação. Essa vingança decorreu da morte de um policial militar, Admilson Pereira de Oliveira, baleado durante um assalto enquanto fazia um “bico” como segurança em um posto de gasolina, e também do guarda civil metropolitano de Barueri, Jeferson Luiz Rodrigues da Silva, que igualmente faleceu após reagir a uma tentativa de assalto dias antes.

A Complexa Trajetória Judicial

Apenas dois anos após a chacina, quatro policiais foram a julgamento. Inicialmente, Fabrício Emmanuel Eleutério e Thiago Barbosa Henklain foram condenados a penas significativas: Eleutério a 255 anos, sete meses e dez dias de prisão, e Henklain a 247 anos, sete meses e dez dias. Paralelamente, o guarda civil Sérgio Manhanhã também recebeu uma condenação de 100 anos e dez meses. Posteriormente, em março de 2018, o ex-PM Victor Cristilder dos Santos, julgado separadamente, foi sentenciado a 119 anos, quatro meses e quatro dias de reclusão. Entretanto, as defesas recorreram das decisões. Consequentemente, um novo julgamento foi realizado em 2017, resultando na absolvição tanto de Cristilder quanto de Manhanhã em 2021, o que demonstra a complexidade e as reviravoltas do processo judicial.

O Último Dia de Fernando, Pelos Olhos da Mãe

Zilda Maria de Jesus recorda que seu filho, Fernando, tinha 34 anos na época e estava desempregado, convalescendo de uma tuberculose. Por essa razão, ele havia começado a pintar a casa da família. Zilda narra a última conversa que teve com Fernando naquele dia. Ao retornar do trabalho em uma quinta-feira, ela se surpreendeu ao encontrar a casa arrumada, algo incomum para seu filho, conhecido por ser desorganizado. Fernando, usando máscara devido ao pó da pintura, estava prestes a realizar o último exame para a tuberculose. “Cheguei em casa, e a última conversa que me lembro foi que ele tinha que acabar essa parede aqui”, conta Zilda, apontando para uma das paredes. Eles se sentaram na escada, e Fernando pediu sua opinião sobre a parede amarela, que ela aprovou. Por volta das 20h, Fernando tomou banho e saiu de casa, dirigindo-se ao bar do Juvenal para encontrar amigos. Infelizmente, ele jamais retornaria.

O Cenário de “Hospital de Guerra”

Zilda, ao receber a reportagem em sua casa em julho deste ano, relembrou os momentos após a chacina. Inicialmente, o barulho dos tiros foi confundido com fogos de artifício, mas rapidamente ela soube da tragédia que atingira seu único filho. Ao chegar ao local, a cena era indescritível: “Quando eu entrei lá, eu vi meu filho na maca. Aí ele e outro moleque [estavam mortos]. E os outros caras todos feridos. Parecia um hospital de guerra. E chegava gente. Era gente gritando”, relatou ela, chocada com o caos. Mais tarde, na delegacia, Zilda obteve a confirmação de que policiais que moravam na região e patrulhavam a área foram os responsáveis pelo assassinato de Fernando. As investigações demonstraram claramente que seu filho morreu sem qualquer processo criminal ou acusação contra ele, reforçando a brutalidade e injustiça do ocorrido. “Todos os meninos foram investigados. Não tem nada contra ele”, afirmou.

A Transformação e Luta de Zilda

Dez anos se passaram desde a tragédia, e embora as paredes pintadas por Fernando permaneçam as mesmas, Zilda Maria de Jesus se transformou profundamente. Uma mulher negra, de origem humilde, que trabalhou por muitos anos como empregada doméstica e enfrentou cinco abortos antes de ter Fernando, Zilda se viu sozinha após a morte do filho. Entretanto, essa dor a impulsionou a se tornar uma respeitada liderança. Atualmente, ela não só atua na comunidade em que reside, mas também representa diversas outras mães que tiveram seus filhos assassinados em todo o país. Apesar de sua resiliência, Zilda desabafa sobre o peso de sua jornada: “Eu mudei muito meu comportamento. Tem horas assim que eu acho que eu já engoli muito sapo, já levei muita porrada na vida. Eu já caí, morei na rua, chuva, fome, e superei isso. Mas ele morreu do jeito que morreu, filha”, lamenta. Ela, que não se considera uma guerreira, carrega a dor de ter perdido seu único laço sanguíneo. “Meu único sangue era ele. Agora não tenho direito de ser vó. Me tiraram tudo. Acabou. Mas eu falo que eu acho que eu nasci mesmo para isso”, conclui, com a voz embargada pela dor.

O Legado das Chacinas e o Movimento Mães de Osasco

O termo “chacina”, que descreve a violência simultânea contra um grande número de vítimas, frequentemente tem como pano de fundo a atuação de grupos de extermínio, por vezes envolvendo agentes públicos, como policiais. Esses ataques, quando contam com a participação de agentes estatais, tendem a ocorrer após a morte de um policial, sugerindo uma motivação de retaliação. Além disso, conforme o estudo “Chacinas e a Politização das Mortes no Brasil”, publicado pela Fundação Perseu Abramo em 2019, esses assassinatos múltiplos representam uma forma radical de violência letal utilizada como recurso político de controle social, uma demonstração pública de poder por organizações criminosas e agentes públicos em contextos de instabilidade. A chacina de Osasco, Itapevi e Barueri é apenas um dos muitos exemplos de violência letal no estado de São Paulo. De fato, um levantamento da cientista social Camila Vedovello revela que, entre 1980 e 2020, foram registrados 828 homicídios múltiplos na região metropolitana de São Paulo. Somente em 2015, ano da chacina de Osasco, o estado registrou pelo menos 15 ocorrências desse tipo entre janeiro e outubro.

Um precedente marcante de violência em massa no estado foram os Crimes de Maio de 2006, que resultaram na morte de pelo menos 564 pessoas e deram origem a uma das mais importantes organizações de defesa dos direitos humanos no Brasil: o Movimento Mães de Maio. Inspiradas por essa iniciativa, as mães das vítimas de Osasco e Barueri também decidiram unir suas forças. Assim, nasceu o Movimento Mães de Osasco e Barueri, e a Associação 13 de Agosto, ambas atualmente presididas por Zilda. “A gente não tem nem direito de guardar o luto”, explica ela, que transformou a profunda dor da perda em uma luta incessante por justiça. “Eu não quero dinheiro, ninguém quer dinheiro”, enfatiza Zilda, reiterando que o principal objetivo das famílias é a responsabilização dos culpados e a garantia de que tais crimes não se repitam. Anualmente, essas mães se reúnem para homenagear seus filhos, com o próximo ato previsto para o sábado, 16 de agosto de 2025.

A Resposta das Autoridades

Procurada pela Agência Brasil, a Secretaria de Segurança Pública de São Paulo informou que o inquérito policial, instaurado pelo Departamento Estadual de Homicídios e de Proteção à Pessoa (DHPP) para investigar o caso, foi concluído em dezembro do mesmo ano da chacina. De acordo com a secretaria, a investigação resultou na identificação e indiciamento de oito pessoas, sendo sete policiais militares e um guarda civil metropolitano. Além disso, a pasta garantiu que todos os policiais militares envolvidos no caso foram expulsos da corporação, evidenciando uma medida de punição administrativa diante da gravidade dos fatos.

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