Delegados da 5ª Conferência Nacional de Promoção da Igualdade Racial (Conapir) entregaram, em Brasília, uma série de propostas cruciais ao governo federal. O evento, que reuniu cerca de 2 mil participantes de diversas partes do país, teve como objetivo primordial a elaboração de diretrizes e recomendações para o aprimoramento de políticas públicas voltadas à igualdade, à democracia, à reparação histórica e à justiça racial no Brasil. A culminação dos debates ocorreu nesta sexta-feira (19), marcando um passo significativo na luta por direitos equânimes.
O Encontro Nacional e Suas Deliberações
O Centro de Convenções Ulysses Guimarães, na capital federal, serviu de palco para as intensas discussões da 5ª Conapir. Durante os dias de conferência, 1.700 delegados eleitos, 200 convidados e 50 observadores engajaram-se na análise de 740 propostas, que já haviam sido aprovadas em etapas municipais, estaduais e regionais. A finalização destas propostas representa, portanto, um consenso coletivo e um reflexo da vontade popular.
Na quinta-feira (18), por exemplo, uma reunião plenária destacou a memória da socióloga e ativista do movimento negro Luiza Bairros. A ex-ministra-chefe da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial do Brasil (Seppir), que atuou entre 2011 e 2014 e faleceu em 2016, foi homenageada por sua inestimável contribuição à causa. Ademais, na reunião deliberativa, os textos foram submetidos à votação de todos os delegados presentes, os quais realizaram ajustes finais para assegurar que o documento refletisse verdadeiramente a vontade coletiva, sendo posteriormente encaminhado ao governo.
Manifestações Culturais e Sociais Marcantes
A programação da quinta-feira também foi enriquecida por manifestações espontâneas que ressaltaram a riqueza e a resistência das culturas afro-brasileiras. Comunidades de terreiro de religiões de matriz africana, como o Candomblé e a Umbanda, ocuparam os corredores com cânticos, vestimentas e adornos tradicionais. Eles levaram “seu axé” ao palco da plenária, clamando por respeito ao saber ancestral e por um reconhecimento mais profundo de sua identidade como forma de resistência.
Em seguida, capoeiristas formaram uma roda, unindo-se em coro para defender a valorização da capoeira. Através de um protesto pacífico, caracterizado por rodopios e rasteiras, embalado pelos sons de berimbaus, pandeiros e agogôs, os delegados da Conapir propuseram a inclusão da capoeira nos currículos escolares. Esta medida visa celebrar a cultura afro-brasileira, que transmite tradição, ética e valores, transcendendo a mera percepção da capoeira como atração turística.
João Moreira, conhecido como Mestre Pelé, professor de educação física no Grande ABC Paulista, defendeu veementemente a capoeira. Ele enfatizou que essa arte-luta, criada por escravizados no Brasil, hoje “educa, ensina a ter respeito com o próximo e a disciplina de sua própria pessoa”. Além disso, Mestre Pelé enalteceu os griôs, sábios contadores de histórias, como figuras experientes e respeitadas. Ele salientou que “os mestres, mesmo sem nunca terem conseguido ir a uma universidade, iniciaram todo esse processo educacional com a capoeira”.
Diversidade de Vozes e Lutas por Direitos
A Conapir serviu como um espaço vital para que diversas vozes e grupos apresentassem suas demandas e partilhassem suas experiências de luta contra o racismo e a desigualdade. A pluralidade dos participantes evidenciou a complexidade das intersecções de raça com outras identidades e vulnerabilidades.
A Luta Cigana pela Visibilidade
Marisa e Nardi Casanova Calim, ciganas de Curitiba, expressaram seu lamento pela invisibilidade que enfrentam tanto da sociedade civil quanto do Estado brasileiro. Elas relataram que seus direitos à saúde, educação, moradia e segurança pública são frequentemente negligenciados. Marisa reforçou a importância do Artigo 5º da Constituição Federal, afirmando que “ser cigana deveria ser viver o dia-a-dia com a tua roupa, com a tua identidade, que são teus trajes, com o que se tem de tradições, dos costumes. Mas, geralmente, as pessoas não entendem esse tipo de cultura, por isso somos um povo discriminado e sofremos muitos preconceitos. Chega! A Constituição Federal diz, no artigo 5º, que qualquer pessoa pode ir e vir por onde ela quiser”.
A Preocupação da Juventude Negra
Entre os delegados, a estudante Martha Lúcia Briola de Souza, de 25 anos, vinda de Niterói (RJ), participou do evento com seu filho Felippe José, de 8 meses. Representando a juventude, a mãe negra e periférica, ela transformou a brincadeira de chamar seu bebê de “o mais novo delegado da V Conapir” em uma reflexão profunda. Ela revelou seu medo de que o filho sofra discriminação por ter o corpo negro, temendo que “confundam meu filho com um bandido se o julgarem pela cor dele, porque o alvo sempre tem, no meio, o preto. Nossos corpos não têm que morrer dessa forma. Temos que viver. Nosso corpo precisa de bem-viver”. A jovem justifica seu receio pela história secular do povo brasileiro, lembrando que “os navios negreiros genocidas vieram da África. Aqui, com a colonização dos portugueses, nossos corpos vêm sofrendo há 500 anos. Eu tenho medo, sim, da segurança pública. E existem racismo e preconceito, sim.”
Experiência e Resistência da Geração Mais Velha
O sentimento de Martha Lúcia foi ecoado pela experiência de vida de Luana Evanderlina, de 74 anos, delegada de Duque de Caxias (RJ). Como membro do Conselho Municipal de Defesa dos Direitos do Negro e da Promoção da Igualdade Racial e Étnica de Caxias, Luana possui um vasto conhecimento sobre o contexto de violência racial. Ela acumulou 40 anos de trabalho como assistente social em quatro favelas da Baixada Fluminense, o que lhe proporcionou uma visão nítida da realidade. “A maldade é proporcional ao tom de pele da pessoa. Quanto mais negro, se é um negro retinto, então, mais maldade, maior a perversidade. O negro não tem o direito de abrir a boca. Eles matam primeiro e perguntam depois”, lamentou a militante. Não obstante, Luana Evanderlina vê a Conapir como uma oportunidade vital para lutar pela igualdade de direitos e exigir reparação pelos danos históricos causados pelo racismo. Ela argumenta que “o Brasil, literalmente, é um país negro. Esse legado é nosso, porque quem fez esse país foi o povo preto retinto. Mas muita gente sempre tem em mente o modelo europeu dos nossos colonizadores brancos, o que atrasa o entendimento de que esse país é nosso”.
Direitos dos Trabalhadores Domésticos
Eliane de Lima, conhecida como Lóla, de Campina Grande (PB), trouxe à tona outras facetas do racismo. Ela expôs a perspectiva vivida por trabalhadores domésticos, frequentemente marginalizados em “quartinhos” dentro das casas de família. Eliane, que integra a Associação dos Trabalhadores Domésticos de Campina Grande, esteve na conferência para cobrar o cumprimento integral da Lei Complementar nº 150/2015. Esta legislação unificou os direitos dos trabalhadores domésticos, equiparando-os aos dos demais trabalhadores urbanos e rurais. Apesar de conhecer esses direitos na ponta da língua (como adicional noturno, controle de jornada, FGTS e seguro-desemprego), ela constata que não estão universalizados. “A gente trabalha demais e ganha pouco por ser trabalhador doméstico. Nossa força não é valorizada no mercado de trabalho”, afirmou Eliane de Lima.
A Causa Indígena na Conapir
A psicóloga e professora indígena Mick Aimirim Poti, de Caruaru (PE), representou seu povo Karaxuwanassu na conferência. Em Brasília, ela uniu-se a outros grupos para reivindicar a inclusão e a permanência dos povos indígenas no Estatuto de Igualdade Racial. Tal medida, conforme explicou, visa ampliar o alcance das políticas públicas a essas comunidades. “Viemos de vários estados com a consciência de que a nossa luta, enquanto indígenas, é bem maior do que as lutas individuais. Nossa perspectiva é de que essa mudança, para incluir os indígenas, vai fazer com que todos nós no Brasil consigamos acessar as políticas públicas que necessitamos e temos direito”, declarou.
Interseccionalidade e Luta LGBTQIA+ Negra
A discriminação em diversas frentes e a intolerância religiosa são realidades cotidianas para o jovem Vinny Obaluaê, do Movimento Negro Unificado (MNU) da Bahia. Ele enfrenta preconceitos em razão de sua identidade de gênero (gay), da cor de sua pele (preta) e de sua crença de matriz africana. Vinny circulou pelos ambientes da Conapir com um leque de cores do arco-íris, chamando a atenção. Ele expressa o desejo de ampliar a representatividade negra em espaços de poder, decisão e visibilidade, como na política, na mídia, nas artes, no mercado de trabalho e nas comunidades acadêmicas. “Estamos lutando para ocupar cada vez mais os nossos espaços. Hoje, já é possível ver negro, gays e lésbicas em postos como os de médico, juiz ou doutora desembargadora para termos voz. E ainda assim é difícil”, pontuou Obaluaê.
Maternidade e Legado da Luta
Outra assistente social de Niterói (RJ), Thaísa Bento Ferreira, levou sua filha Lívia, de 6 meses, como um exemplo vivo de sua motivação. Thaísa busca transmitir à pequena Lívia o letramento racial que ela própria adquiriu na universidade. “Acho que a maternidade não pode ser um impeditivo para que continuemos lutando com políticas públicas que vão beneficiar minha filha no futuro”, enfatizou. Por conseguinte, Thaísa Bento almeja a esperança de um futuro mais digno e equitativo por meio da igualdade racial. Ela conclui: “Construo esse espaço com ela aqui, pensando que a Lívia também o construirá, em algum momento, lutando pelos próprios direitos e pelos direitos dos filhos dela. Com isso, a gente vai ensinar as nossas próximas gerações.”
A 5ª Conapir encerrou-se, assim, reforçando o compromisso coletivo com o tema “Igualdade e Democracia: Reparação e Justiça Racial”. As propostas e os relatos apresentados convergem para a construção de um país onde a diversidade seja celebrada e os direitos, universalmente garantidos.



