A recente condenação do ex-presidente Jair Bolsonaro, aliada à proeminente atuação do Poder Judiciário brasileiro, está redefinindo o cenário político nacional. O cientista político Gabriel Rezende, doutor pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), analisa que esses eventos sinalizam um enfraquecimento da “onda bolsonarista”, um fenômeno que ele define como populismo de direita. Em sua perspectiva, o Brasil atravessa um momento de rearranjo político significativo, culminando na possível transição dessa corrente para uma fase de menor influência.
A Ascensão e Definição do Populismo de Direita no Brasil
Gabriel Rezende, que se prepara para lançar seu livro “A ascensão do populismo de direita no Brasil” pela Editora Appris em outubro, oferece uma compreensão aprofundada sobre o tema. Em primeiro lugar, ele descreve o populismo como um fenômeno político complexo e uma ferramenta de representação que emerge consistentemente em períodos de crise. A obra é fruto de sua tese de doutorado, motivada pela observação global da ascensão de líderes populistas, a exemplo de Donald Trump nos Estados Unidos, Kaczyński na Polônia, Beppe Grillo na Itália, Viktor Orbán na Hungria e, naturalmente, Jair Bolsonaro no Brasil.
Nesse sentido, o pesquisador argumenta que as intensas crises política, econômica e social que assolaram o Brasil entre 2013 e 2016 criaram um ambiente propício, a “tempestade perfeita”, para a emergência do movimento bolsonarista. As principais características deste populismo de direita incluem, antes de mais nada, a presença de um líder carismático central. Além disso, destacam-se discursos que estabelecem uma dicotomia entre “o povo” e uma “elite da velha política”, o uso estratégico de narrativas nacionalistas e religiosas, e, concomitantemente, uma exploração habilidosa das mídias sociais para a mobilização de apoiadores.
O Cenário Histórico: Quatro Ondas Populistas no Brasil
Historicamente, o Brasil já vivenciou distintas fases populistas, conforme aponta Rezende em sua análise. A primeira manifestou-se entre as décadas de 1930 e 1960. Posteriormente, nos anos 1990, surgiu a segunda onda, caracterizada como populismo neoliberal, tendo Fernando Collor como figura central. A terceira, denominada “onda rosa” ou populismo de esquerda, teve ressonância não apenas no Brasil, mas também em outros países da América Latina, com líderes como Evo Morales na Bolívia, Hugo Chávez na Venezuela e os Kirchner na Argentina. A onda atual, portanto, é a quarta, paralelamente observada na Europa e nos Estados Unidos, e corresponde ao populismo de direita.
Ao abordar a natureza multifacetada do populismo, frequentemente disputado por teóricos e movimentos políticos, Rezende esclarece sua própria interpretação. Em suma, ele não o concebe como uma ideologia ou regime político específico, dado que carece de um conteúdo programático predefinido. Pelo contrário, o populismo congrega um conjunto de questões ideológicas em torno de um eixo central. Ele se manifesta, portanto, em momentos de crise democrática e funciona como uma ferramenta de representação política, seja ela de direita ou de esquerda.
Elementos Chave do Populismo de Direita e a Ascensão Bolsonarista
Para que um fenômeno seja classificado como populista, é essencial que apresente determinados elementos. Primeiramente, destaca-se a figura central de um líder carismático, responsável por aglutinar as insatisfações sociais. Em seguida, a fundação do movimento ocorre a partir de um antagonismo claro, uma diferenciação entre “nós” (o povo) e “eles” (a elite). Isso se traduz em uma ordem dicotômica que estabelece uma distinção entre a massa popular e aqueles que supostamente a dominam. No populismo de direita, por exemplo, o “inimigo” pode ser o imigrante ou os membros da classe política tradicional; Bolsonaro, aliás, utilizou amplamente essa retórica da “velha política” versus “nova política”.
Adicionalmente, as diferenças entre o populismo de direita e o de esquerda são marcantes. O populismo de direita frequentemente explora a narrativa nacional-nativista, como o slogan “Make America Great Again” de Trump. A religião também se revela um elemento recorrente; no contexto brasileiro, com sua maioria cristã, o populismo de direita soube mobilizar discursos conservadores e morais. Em 2018, por exemplo, a direita soube explorar essas pautas, contrastando-se com o governo do PT e adotando uma postura anti-sistema. Em contrapartida, o populismo de esquerda, por outro lado, busca a ampliação de lacunas sociais, focando em questões progressistas e direitos das minorias. Ele agrega grupos marginalizados, com discursos voltados para a democracia e a liberdade moral, diferentemente das críticas conservadoras sobre pautas como direitos LGBTQIAP+ ou aborto, frequentemente levantadas pelo populismo de direita.
Os Cinco Pilares que Impulsionaram o Bolsonarismo
A eleição de Bolsonaro, segundo Gabriel Rezende, foi impulsionada por cinco pilares essenciais. O primeiro foi o “lavajatismo”, que capitalizou o discurso de moralidade e ética na política, contando inclusive com a presença de Sérgio Moro em seu governo. Em segundo lugar, a mobilização do eleitorado evangélico foi crucial. Bolsonaro, embora católico, demonstrou grande habilidade em dialogar com essas lideranças religiosas, utilizando slogans como “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”, que ressoaram profundamente com essa parcela da população.
O agronegócio constituiu o terceiro pilar fundamental. Este setor, de grande peso no PIB brasileiro, abraçou a campanha de Bolsonaro por diversas razões, como o respaldo à ocupação de terras. A presença de Teresa Cristina no Ministério da Agricultura reforçou essa aliança. Além disso, as mídias digitais representaram o quarto elemento. O bolsonarismo demonstrou notável destreza no uso das redes sociais, por conseguinte, mobilizando pautas e eleitores por meio de uma ampla rede de representantes. Por fim, a aproximação com os militares formou o quinto pilar, servindo como uma forma de “moralizar a política”. Muitos militares integraram os escalões da Esplanada dos Ministérios, e alguns deles, inclusive, estão envolvidos na recente condenação por tentativa de golpe de Estado.
O Judiciário como Contraponto à Onda Populista
O papel do Judiciário nesse contexto de ascensão do populismo de direita também é objeto de análise de Rezende. O Supremo Tribunal Federal (STF), de acordo com a Constituição de 1988, atua como guardião da carta magna. Nos últimos anos, o Poder Judiciário tem expandido sua atuação, em virtude do recebimento de demandas que, por vezes, são de competência do Executivo ou Legislativo, mas que estes não conseguem endereçar. Consequentemente, muitos processos foram judicializados. Na visão do especialista, o que se observa é um Judiciário responsivo, compelido a se posicionar diante de questões de alta complexidade.
A preocupação do populismo de direita, nesse cenário, é mitigar o poder do Judiciário, pois este foi o único poder no Brasil capaz de se contrapor ao governo Bolsonaro, funcionando, com as devidas ressalvas, como um “poder moderador”. As recentes propostas de anistia e a “PEC da Blindagem” surgiram como respostas do bolsonarismo ao julgamento da Primeira Turma do STF sobre os acusados pela tentativa de golpe de Estado. Essas iniciativas da extrema direita visam, por conseguinte, demonstrar sua capacidade de confrontar o Judiciário. Contudo, o efeito social foi o contrário; a PEC da Blindagem, por exemplo, não teve boa recepção, sendo vista como um “vazio argumentativo” que contradiz os próprios preceitos de lei e ordem que esses congressistas defendiam durante suas campanhas eleitorais.
O Enfraquecimento da Onda e o Cenário de Rearranjo Político
Gabriel Rezende aponta que, por um certo período, as instituições brasileiras não foram eficazes em lidar com o movimento autoritário de extrema direita. Ele cita, por exemplo, a incapacidade ou falta de vontade da Procuradoria-Geral da República em avançar em questões relacionadas ao governo Bolsonaro, deixando o Judiciário como o principal ator nesse enfrentamento. Com a recente condenação do ex-presidente, entretanto, observa-se um enfraquecimento político. Seus apoiadores mais fiéis perdem uma base e uma referência concreta. A proibição de conceder entrevistas, por exemplo, afeta significativamente um movimento populista cuja figura central não pode se comunicar diretamente.
Nesse vácuo, diversas figuras buscam assumir essa liderança, como o pastor Silas Malafaia, a ex-primeira-dama Michelle Bolsonaro, os filhos do ex-presidente, e o governador Tarcísio de Freitas. Abre-se, assim, um amplo flanco de disputa pelo legado desse populismo. Sob essa ótica, é possível afirmar que há um enfraquecimento do populismo de direita, com avaliações sobre o nível de dano à imagem do bolsonarismo e a viabilidade de um rearranjo em torno de uma nova figura política principal. Analogamente, o presidente Lula ainda não conseguiu consolidar uma sucessão clara para a esquerda, gerando incertezas sobre quem poderá unificar essa frente política caso ele não concorra à reeleição.
Em conclusão, o momento atual é de intenso rearranjo político no Brasil. A política, como se sabe, é dinâmica, e muitas transformações podem ocorrer antes das eleições de 2026, indicando um período de grande volatilidade e reconfiguração das forças políticas.