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Certificação de quilombolas muda rumo de disputa por terra em Goiás

A certificação de quilombolas em Antinha de Baixo (GO) suspendeu desocupação de terras e remeteu o caso à Justiça Federal, gerando forte contestação dos fazendeiros.
Certificação quilombola Antinha de Baixo
Foto: Valter Campanato/Agência Brasil

A recente certificação de comunidades quilombolas na localidade de Antinha de Baixo, em Santo Antônio do Descoberto, Goiás, desencadeou uma significativa reviravolta em uma prolongada disputa por terras na região. Esta medida resultou na suspensão de um processo de desocupação de propriedades e na remessa do caso para a Justiça Federal, provocando forte contestação por parte dos produtores rurais envolvidos na área de 1,5 mil hectares.

A Controvérsia dos Produtores Rurais

Os advogados que defendem os produtores rurais criticaram veementemente, nesta semana, a investigação conduzida pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) acerca da presença quilombola na vasta área em questão. Eduardo Caiado, representante legal dos espólios de Raul Alves de Andrade Coelho, Luiz Soares de Araújo e Maria Paulina Boss — apontados como proprietários legítimos da terra em um litígio judicial que se arrasta desde a década de 1940 — manifestou sua indignação.

Em uma carta enviada à reportagem da Agência Brasil, o advogado Eduardo Caiado expressou sua discordância, afirmando que os proprietários originais foram rotulados como “grileiros”, enquanto aqueles que ele descreve como invasores, que supostamente realizaram loteamentos clandestinos e comercializaram dezenas de chácaras de lazer com piscinas nos últimos cinco anos, teriam sido “transformados” em quilombolas. Por conseguinte, essa percepção sublinha a complexidade e a inversão de narrativas presentes no cerne do conflito agrário.

A Autodefinição Quilombola e a Tradição Ancestral

Em contrapartida, as famílias que se autoidentificam como quilombolas sustentam uma versão distinta da história. Estas comunidades, que já possuem um certificado de autodefinição emitido e publicado pela Fundação Palmares em 1º de agosto, defendem que a presença de seus antepassados na área remonta a pelo menos dois séculos. Um exemplo é o agricultor Joaquim Moreira, de 86 anos de idade, que ao receber o documento, confirmou ter nascido e crescido na comunidade rural de Antinha de Baixo.

Posteriormente, o senhor Moreira recordou que seus pais e avós, com quem conviveu no século passado, também foram criados na mesma localidade, o que, por sua vez, refuta a alegação dos fazendeiros. Além disso, em reportagem da Agência Brasil divulgada no início de agosto, os moradores que se identificaram como população remanescente quilombola apresentaram evidências de sua ancestralidade, como um cemitério e outras marcas históricas presentes no território.

A Reviravolta Judicial e a Intervenção Federal

O caso tomou um rumo decisivo após uma decisão favorável aos fazendeiros na justiça estadual, que culminou no início da desocupação dos moradores do território no final de julho. No entanto, o cenário mudou drasticamente com a publicação do documento de autodeclaração das famílias quilombolas pela Fundação Cultural Palmares, ocorrida em 1º de agosto. Consequentemente, o Supremo Tribunal Federal (STF) interveio e remeteu o processo para a Justiça Federal, uma decisão que foi duramente criticada pelo advogado Eduardo Caiado.

O advogado dos fazendeiros criticou a medida, ponderando que a área passou a despertar o interesse do Incra simplesmente porque “alguém se autoidentificou como quilombola”. Ademais, ele revelou que pesquisas realizadas em sites e buscadores da internet não encontraram “nenhuma menção a qualquer remanescente de quilombo ou de escravos na região”. Ele argumentou que a juíza estadual suspendeu o cumprimento da sentença e paralisou a desocupação no mesmo dia em que o Incra se habilitou no processo, alegando interesse devido à autodeclaração de uma pessoa vinte dias antes. Além disso, o advogado acrescentou que fazendeiros realizaram extensas pesquisas em “inúmeros e antigos processos judiciais” sem encontrar registros de que a Fazenda Antinha de Baixo fosse ocupada por descendentes de escravos.

Alegações de Interesses Políticos e Processuais

Ao contrário, Caiado cita que Saturnino da Silva Moreira e a Família Pereira Braga, que teriam dado origem ao suposto quilombo na fazenda Antinha, “escreveram no processo judicial de usucapião que compraram terras no local e para ali se mudaram no ano de 1957”. Em carta à Agência Brasil, ele reiterou a tese de que estaria sendo criada uma “narrativa de que na área já existiu um quilombo para suspender o cumprimento da decisão judicial”.

Para Caiado, essa reviravolta estaria ligada a uma exploração política por parte de representantes de partidos de esquerda, bem como a um suposto interesse do governo federal, uma vez que alguns beneficiários da decisão seriam familiares do governador de Goiás, Ronaldo Caiado. O advogado ainda mencionou que o processo judicial se arrastou por décadas devido a medidas protelatórias. Entretanto, ele afirma que as sentenças favoráveis aos seus clientes datam de 1990, com o primeiro trânsito em julgado em 1994, mesmo após a rejeição de dois recursos de apelação na época. Segundo ele, “consta do processo que 11 proprietários da fazenda Antinha de Baixo tiveram seus títulos de domínio reconhecidos pela Justiça e tiveram suas áreas demarcadas”.

Dez anos atrás, conforme salienta o advogado, ações de usucapião movidas por outros produtores rurais na área foram arquivadas. Após as intimações para desocupação voluntária, a juíza da ocasião suspendeu a ordem judicial, entendendo que ainda faltava o julgamento de mais uma ação de usucapião. O julgamento deste caso ocorreu em 2021. No entanto, o advogado argumenta que houve vendas clandestinas de terrenos e um loteamento ilegal em chácaras de lazer, muitas delas “com piscina e casas de veraneio”. Posteriormente, em janeiro do ano passado, a juíza Ailime Virgínia Martins determinou a desocupação voluntária, porém, em março, esta foi suspensa para análise da Comissão de Soluções Fundiárias do TJ-GO, até que uma nova determinação judicial de desocupação fosse emitida e, em seguida, suspensa pelo Supremo Tribunal Federal.

O advogado concluiu sua carta à Agência Brasil ressaltando que a Fazenda Antinha de Baixo foi supostamente loteada de forma ilegal e clandestina em pequenas chácaras de lazer, resultando no surgimento de “condomínios clandestinos da noite para o dia”, sem as licenças ou autorizações necessárias para o parcelamento do terreno em áreas inferiores ao módulo rural, configurando, em sua visão, um crime de parcelamento ilegal.

O Contexto Histórico e a Pesquisa Antropológica

Para compreender a complexidade do caso, o professor Manoel Barbosa Neres, da Universidade de Brasília (UnB), especialista na presença e ocupação de quilombolas na região do entorno do Distrito Federal, explica que essas populações remanescentes começaram a se formar a partir do século XIX, durante o período da exploração mineradora no Centro-Oeste. Ele detalha que a região foi ocupada principalmente após os ataques sofridos no Quilombo do Ambrósio, em Minas Gerais, o que levou à constituição de diversos quilombos nas proximidades de Goiás e do Entorno do Distrito Federal.

O professor Neres ainda comenta que os quilombolas de Mesquita, em Cidade Ocidental (Goiás), relatam uma antiga conexão com as comunidades quilombolas de Santo Antônio do Descoberto. O povoado de Antinha dos Pretos foi o primeiro a ser alvo de investigação por parte do Incra. O pesquisador compreende que é uma conduta comum a existência de pressão contra as equipes de antropologia do Incra quando investigam a presença quilombola em um território. Ele recorda, por exemplo, que “a antropóloga que fez o relatório do Quilombo Mesquita, por exemplo, sofreu ameaças”.

O especialista pondera que as pessoas que alegam morar há mais de 80 anos no local possuem uma situação consolidada. Contudo, ele observa que “havia também algumas situações em que as pessoas tinham a terra e elas perdiam e tinham que sair. Há muitos casos assim. As pessoas não estão mais na terra, mas sabem que aquela terra pertencia a elas”. Para o trabalho antropológico, o professor salienta que o levantamento visa identificar as “marcas das pessoas em uma determinada região”, incluindo “elementos que tragam reminiscências documentais”, mas também os “registros imateriais, como as memórias, as histórias contadas, os vínculos de parentesco e as formas de produção. Tudo isso constitui um tipo de dossiê cultural”, concluiu.

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