Edição Brasília

Brasil quase atinge meta de alfabetização; especialista cobra prioridade política.

Brasil alcança 59,2% de crianças alfabetizadas em 2024, próximo à meta. Especialista da Fundação Lemann defende prioridade política e uso eficaz de recursos para o país atingir 80% até 2030.
Alfabetização Brasil 2030
Foto: Tomaz Silva/Agência Brasil

O Brasil alcançou um patamar de 59,2% de crianças alfabetizadas em 2024, ficando ligeiramente abaixo da meta de 60% estabelecida para o ano. Diante desse cenário, Denis Mizne, CEO da Fundação Lemann, enfatiza a urgência de uma prioridade política robusta e da utilização eficaz dos recursos disponíveis para que o país possa atingir a ambiciosa marca de 80% até 2030, garantindo, dessa forma, um futuro mais promissor para a educação nacional.

Compromisso Nacional e Metas de Alfabetização

Até o final de 2025, o Brasil almeja que, no mínimo, 64% dos estudantes que concluem o 2º ano do ensino fundamental estejam plenamente alfabetizados. Isso implica que essas crianças devem ser capazes de ler frases e textos curtos, além de identificar informações explícitas em materiais simples, como bilhetes ou crônicas, conforme as habilidades delineadas na Base Nacional Comum Curricular (BNCC). Essa meta foi estabelecida pelo Compromisso Nacional Criança Alfabetizada (CNCA), uma iniciativa lançada em 2023 pelo Ministério da Educação (MEC), que atua em regime de colaboração entre a União, estados, Distrito Federal e municípios.

Em 2024, o compromisso nacional estipulava que 60% dos alunos deveriam ser considerados alfabetizados. As redes de ensino, entretanto, chegaram perto, registrando 59,2% de sucesso entre os dois milhões de crianças avaliadas em 42 mil escolas brasileiras. Para o ano de 2030, a meta é ainda mais ousada, visando que pelo menos 80% das crianças brasileiras dominem a leitura e a escrita ao término do 2º ano do ensino fundamental.

Análise do Cenário Atual e Desafios Futuros

Denis Mizne, da Fundação Lemann, ao analisar os resultados, considera que o país se aproximou bastante do objetivo de 2024, o que, por conseguinte, representa uma notícia positiva para a educação brasileira. Ele aponta que, segundo medições da fundação, já se observava um avanço significativo. Mizne chega a inferir que o país teria superado a meta se o Rio Grande do Sul não tivesse enfrentado as enchentes de 2024, mantendo o nível de alfabetização do ano anterior. Contudo, para o especialista, o progresso alcançado requer um foco ainda maior na alfabetização, que, apesar de ser um tema recorrente na pauta educacional, ainda não foi completamente resolvido.

Ademais, ele ressaltou, em entrevista à Agência Brasil, a necessidade premente de aprimorar a aplicação dos recursos destinados ao programa e de intensificar os esforços para alcançar as crianças mais vulneráveis em todas as escolas e redes de ensino. Mizne argumenta que o Compromisso Nacional Criança Alfabetizada já conta com a adesão de todos os estados e de 99% dos municípios, um feito que foi celebrado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva durante a entrega do Prêmio MEC da Educação Brasileira. Vale destacar que, até 2024, apenas Roraima não havia formalizado sua adesão ao CNCA.

Prioridade Política como Pilar Essencial

Para Mizne, um dos pilares fundamentais para alcançar a meta de 80% até 2030 é a atribuição de uma prioridade política inegável à alfabetização. Ele explica que, há poucos anos, a alfabetização era tratada como um assunto “antigo” no Brasil, erroneamente considerado superado. Em contrapartida, dados revelam uma realidade preocupante: em 2019, somente metade das crianças estava alfabetizada na idade certa, e, após a pandemia de covid-19, esse número caiu drasticamente para 31%. Portanto, a atual prioridade política, com a liderança de diversos governadores e o investimento federal, demonstra uma virada de página crucial, permitindo que governos estaduais e municipais tenham melhores condições de trabalho.

Uso Eficaz dos Recursos Disponíveis

A segunda dimensão vital, segundo o CEO da Fundação Lemann, reside na utilização eficiente dos recursos disponibilizados. O Compromisso Nacional Criança Alfabetizada oferece um volume considerável de verbas para os municípios acelerarem a alfabetização, capacitarem professores e apoiarem crianças com maiores dificuldades. Contudo, uma parcela significativa desse dinheiro ainda não está sendo empregada, o que, conforme Mizne, reflete desafios na execução por parte das secretarias de educação na ponta. Por conseguinte, é imperativo otimizar essa gestão para potencializar os resultados.

Busca Ativa por Crianças Vulneráveis

Finalmente, o terceiro foco estratégico é a busca incessante pelas crianças que apresentam as maiores dificuldades de aprendizado. Em cada escola, município, regional e estado, existem estudantes e instituições mais vulneráveis que demandam atenção especial. A combinação desses esforços direcionados, primordialmente, gera maiores avanços na alfabetização e no cumprimento das metas propostas. Dessa forma, é possível garantir que nenhuma criança fique para trás nesse processo fundamental.

Atingir 80% é Factível, mas a Meta Poderia Ser Mais Ambição

Questionado sobre a viabilidade da meta de 80% até 2030, Denis Mizne reafirma que é factível, embora a considere “tímida”. Ele expressa o desejo de ver uma meta ainda mais ambiciosa, que aspire à universalização da alfabetização, pois acredita ser plenamente possível. Por exemplo, diversos estados, independentemente de sua riqueza ou região, já superaram as metas, demonstrando que um bom trabalho pode gerar resultados consistentes.

Nesse contexto, o monitoramento contínuo do Indicador Criança Alfabetizada (ICA) se mostra como uma ferramenta valiosa. A divulgação anual desse índice cria responsabilização e estímulos, já que diversas políticas e até mesmo recursos tributários estão associados a esses resultados. Consequentemente, isso permite que municípios e estados troquem experiências e aprendam com as práticas que se mostram mais eficazes, replicando-as em outras localidades.

Alfabetização de Qualidade: A Base de Tudo

Mizne enfatiza que a alfabetização constitui a base para todo o desenvolvimento educacional. Ele adverte que, se uma criança não aprende a ler adequadamente, ela não conseguirá ler para aprender em outras disciplinas. Uma criança que chega ao 2º ou 3º ano do ensino fundamental sem ser alfabetizada enfrenta enormes dificuldades para acompanhar as aulas, fazer tarefas e realizar provas. Apesar de os pais, geralmente, manterem os filhos na escola em idades mais jovens, essa falta de base pode levar ao abandono escolar no ensino fundamental 2 ou, no mínimo, a um desempenho acadêmico extremamente baixo.

A médio e longo prazos, os prejuízos de uma alfabetização de baixa qualidade ou fora da idade adequada são severos, não apenas para o indivíduo, mas para o Brasil como um todo. Crianças que não concluem a educação básica ou que o fazem com deficiências não podem contribuir plenamente com o desenvolvimento do país, têm acesso limitado ao ensino superior ou técnico e enfrentam muitas restrições. Há décadas, o Brasil paga o preço por não ter dedicado atenção total à educação básica. Embora a alfabetização no 2º ano não seja o único objetivo, ela é uma condição absolutamente necessária para a construção de uma educação de qualidade e para incutir nas escolas a convicção de que toda criança é capaz de aprender.

O Diferencial de Sobral e a Expansão do Modelo

Ao abordar o sucesso de Sobral, no Ceará, Mizne destaca a “prioridade política” como o principal diferencial. Em 2005, Sobral ocupava a 1.500ª posição no ranking equivalente ao Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb) no fim do 5º ano. Contudo, em apenas dez anos, até 2015, a cidade alcançou o primeiro lugar, subindo mil e quinhentas posições. Isso foi resultado de trabalho árduo, foco, apoio aos professores, monitoramento constante e um sistema de consequências que valorizava o aprendizado das crianças. Tal abordagem, que prioriza o desenvolvimento estudantil, expandiu-se e, atualmente, Sobral se destaca não só na alfabetização, mas em todo o ensino fundamental e, mais recentemente, no ensino médio.

Posteriormente, a experiência bem-sucedida de Sobral foi replicada por todo o estado do Ceará, tornando-se um modelo de excelência. Inclusive, o atual ministro da Educação, Camilo Santana, foi governador do Ceará, e Isolda Cela, que atuou como secretária-executiva do MEC, já havia sido secretária de Educação em Sobral e no Ceará, além de governadora. Eles levaram essa experiência para todo o país por meio do Compromisso Nacional Criança Alfabetizada. Portanto, Mizne deseja que essa iniciativa se torne uma política de Estado duradoura, garantindo a sustentação dos resultados ao longo do tempo.

Monitoramento e a Virada de Página na Alfabetização

Os resultados do Brasil no Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (Pisa), onde estudantes demonstram baixa compreensão leitora e desempenho abaixo da média da OCDE em matemática e ciências, não surpreendem Mizne. Segundo ele, “não há milagre” nem como ignorar os anos iniciais da escola e tentar recuperar o atraso aos 15 anos. O aprendizado é um processo contínuo, onde cada etapa depende da anterior. Assim, o descaso histórico com a alfabetização gerou muitos prejuízos.

A boa notícia, porém, é que não se pode mais falar em descaso. Todos os governadores estão engajados, e praticamente a totalidade dos municípios participa da avaliação do ICA. Além disso, foram instituídos incentivos tributários associados à alfabetização, o que confere grande valor político, pois um bom progresso na área pode significar mais orçamento. Dessa forma, com o apoio do MEC, dos estados e de entidades como a Fundação Lemann, Instituto Natura e Associação Bem Comum, o Brasil vive uma importante “virada de página”. Mizne conclui que o país irá colher esses resultados, mas ressalta a importância de não desistir, pois ainda há 40% de crianças não alfabetizadas que precisam ser alcançadas e o processo deve ser aprimorado gradativamente.

Indicador Criança Alfabetizada (ICA) versus Saeb

A Fundação Lemann concorda com a substituição do Saeb, que utiliza avaliações por amostragem, pelo Indicador Criança Alfabetizada (ICA), que emprega uma metodologia censitária, avaliando todos os alunos do 2º ano do ensino fundamental por meio de avaliações estaduais alinhadas ao MEC. Denis Mizne explica que o Saeb do segundo ano, com sua amostra pequena, sempre gerou muitos problemas. O Saeb foi concebido há 20 anos para avaliar o sistema educacional como um todo, não o desempenho individual dos alunos.

Além disso, o Saeb apresenta uma demora considerável na divulgação dos resultados, sendo bienal e divulgado quase um ano após a realização da prova, o que é inaceitável para uma tomada de decisão rápida. Em contraste, o ICA é uma iniciativa positiva por ser censitário e acontecer anualmente, proporcionando maior velocidade, prioridade, suporte e incentivos. Mizne acredita que, a cada ano, o ICA se aprimorará, e o mais importante é que a iniciativa foi amplamente abraçada pelos envolvidos, representando um avanço significativo para o monitoramento e a melhoria da alfabetização no país.

Corrida Nas Pontes Edicao Brasilia