Edição Brasília

A Trégua de 1914 e suas Lições

Estátua que simboliza a Trégua de 1914, produzida por Andy Edwards.

Por Bruno Brito – Colunista Edição Brasília

Natal de 1914, Primeira Guerra Mundial, há exatos 109 anos.  De um lado o exército alemão e do outro o exército inglês, ambos entrincheirados na frente de batalha. Era um período marcado por intensos combates, condições climáticas adversas e sofrimento generalizado entre os soldados nas trincheiras. Com a chegada do Natal, algo notável começou a acontecer. No entardecer de 24 de dezembro de 1914, os soldados alemães começaram a decorar suas trincheiras com velas e pequenas árvores de Natal. Além disso, eles começaram a cantar canções natalinas em alemão.

Os soldados britânicos, inicialmente surpresos e cautelosos, responderam com aplausos e, eventualmente, começaram a cantar suas próprias canções natalinas em inglês. Os dois lados, que estavam acostumados a se ver como inimigos mortais, começaram a se comunicar de forma amigável, gritando saudações e até mesmo trocando presentes improvisados, como chocolate, charutos e outras lembranças.

Conforme a noite avançava, alguns soldados de ambos os lados começaram a sair de suas trincheiras e se encontraram na chamada “terra de ninguém“, a área entre as linhas de frente. Lá, eles trocaram mais presentes, cumprimentaram-se, compartilharam histórias e, em alguns casos, até mesmo organizaram partidas de futebol improvisadas, usando bolas feitas de trapos.

Esse episódio, conhecido como a “Trégua de 1914”, emergiu de forma absolutamente espontânea, variando em intensidade e duração em diferentes partes do front ocidental. Em alguns setores, a trégua durou apenas algumas horas, enquanto em outros, estendeu-se por vários dias. Esse comercial de Natal retrata bem esse fantástico episódio, link aqui.

Enquanto isso, os comandantes e os oficiais de alto escalão instalados no conforto de seus quarteis generais, com fartura de comida e bebida distribuíram ordens expressas para que a “trégua de Natal” não mais se repetisse. A guerra se estendeu por mais 3 longos anos.

Considerando que o ano de 2023 foi um período marcado por conflitos em várias partes do mundo, a Trégua de 1914 nos oferece alguns insights para reflexão:

i. Sobre a Natureza Humana. Em meio à brutalidade das trincheiras, a empatia e a compaixão emergiram de forma espontânea, mostrando que, mesmo nas condições mais adversas, a conexão humana pode prevalecer quando existem os incentivos corretos. Por trás das linhas de combate há seres humanos que compartilham aspirações e desejos comuns.

ii. O Poder da Comunicação. A comunicação é a espinha dorsal das relações humanas. Ela permite a conexão entre pessoas, comunidades e culturas. Através da linguagem verbal e não verbal, soldados inimigos conseguiram compartilhar experiências, compreender perspectivas diferentes e construir laços emocionais. A Comunicação é a força fundamental que molda o tecido da sociedade humana e deve ser cada vez mais praticada e aprimorada para a resolução de conflitos.

iii. Decisões Locais versus Controle Central. A descentralização na tomada de decisão incentiva a inovação e a criatividade. Equipes locais, ao terem a autonomia para experimentar e testar novas abordagens, desenvolvem soluções melhores e mais adaptadas à realidade local.

iv. A importância de se ter a “pele em jogo”. Nos tempos antigos, era comum que os generais liderassem suas tropas pessoalmente na frente de batalha. A prática de liderar na linha de frente inevitavelmente expunha os generais a riscos pessoais significativos e implicava consequências diretas para os líderes se as batalhas não fossem bem-sucedidas. Conforme as estratégias militares evoluíram, houve uma separação física entre a liderança político-militar e os soldados nas frentes de batalha. Atualmente os governantes e autoridades que decidem por entrar numa guerra não sofrem diretamente as consequências de suas decisões. Esse conceito de “pele em jogo” e a importância de se ter consequências pessoais reais ao tomar decisões é bem explorado no livro “Arriscando a própria pele” de Nassim Taleb. O autor argumenta que muitas pessoas, em diferentes setores da sociedade, não estão suficientemente expostas às consequências de suas ações e decisões, o que leva a comportamentos irresponsáveis e sistemas fragilizados. Ao ter a própria pele em jogo, as pessoas têm um interesse mais direto e profundo nas decisões que tomam em várias áreas, incluindo finanças, política, guerras, medicina, ética profissional e outros campos. Quando se tem a “pele em jogo” busca-se mais a cooperação e menos o confronto. Assim, a falta de “pele em jogo” leva a incentivos distorcidos e a ações e decisões de alto risco para os outros, ou seja, para as sociedades.

v. A Banalidade do Mal. Trata-se de um conceito filosófico introduzido pela filósofa política alemã-judia Hannah Arendt que cunhou essa expressão ao analisar o julgamento do criminoso de guerra nazista Adolf Eichmann em Jerusalém, em 1961. A ideia fundamental por trás da Banalidade do Mal é a compreensão de que a maldade extrema pode surgir não apenas de ações monstruosas, mas também de ações ordinárias realizadas por indivíduos comuns em circunstâncias sociais específicas através da obediência cega a ordens superiores, em conformidade com as normas sociais vigentes. Arendt destacou a capacidade dos indivíduos de se envolverem em ações cruéis quando desvinculam suas responsabilidades morais, reduzindo sua autonomia moral em prol da conformidade com autoridades e sistemas estabelecidos. A contribuição de Arendt com o conceito da Banalidade do Mal levantou questões importantes sobre a natureza da responsabilidade moral e a importância do pensamento crítico em situações sociais extremas. Sua análise desafia a ideia simplista de que o mal é exclusivamente perpetrado por indivíduos excepcionalmente malignos e destaca a necessidade de compreender as condições sociais que podem conduzir a ações moralmente condenáveis, mesmo por pessoas consideradas normais.

Enfim, devemos estar atentos e vigilantes em relação aos fenômenos acima descritos, promovendo a defesa das liberdades individuais, a liberdade de comunicação e aprimorando o senso crítico em relação a regras e decisões impostas por autoridades que não possuem a “pele em jogo”.

Que nesse Natal façamos uma reflexão sobre as lições desse fantástico episódio que foi a Trégua de 1914 para que a empatia e a compaixão prevaleçam na nossa sociedade. Um feliz 2024 a todos.

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