Chega a dar um nó no cérebro pensar que o mesmo diretor, roteirista e cinematógrafo de A Noite das Bruxasfizeram a também adaptação de Agatha Christie: Morte no Nilo.
Sejamos um pouco justos com o filme de 2022. A pós-produção foi um caos com as acusações contra Armie Hammer (Me Chame Pelo Seu Nome) e o cancelamento de Letitia Wright (Guava Island) ambos personagens centrais da trama. O filme teve que ser todo remontado para esconder os atores e por conta da pandemia, ainda sofreu diversos adiamentos. A bagunça é perceptível no filme, que parece todo remendado, tem efeitos especiais horrendos, mas ainda encontra na atuação de Kenneth Branagh (A Pura Verdade) como Hercule Poirot e em alguns lampejos estéticos, como o uso dos vitrais, uma fagulha de diversão.
Uma bilheteria baixa, quase metade da feita porAssassinato no Expresso do Oriente e com um orçamento duas vezes maior que o antecessor, tudo parecia encaminhar para o engavetamento das histórias de Poirot.
Entretanto, logo depois do lançamento do filme, Branagh acabou vencendo seu primeiro Oscar pelo roteiro de Belfast. Em outubro do mesmo ano ele já estava filmando e estrelando A Noite das Bruxas, baseado no livro homônimo, em português, de Christie. A boa notícia é: o filme é o melhor da “Trilogia Poirot”, do diretor.
Na trama, seguimos o detetive, agora aposentado, vivendo em Veneza e com um segurança que impede qualquer um de se aproximar dele com possíveis novos casos. Até que um dia, uma antiga amiga de Poirot e escritora de romances policiais (vivida por Tina Fey, ótima como sempre) o convida para uma festa de Halloween na cidade e que contará com uma sessão mediúnica. Claro, um assassinato acontece dentro da casa e o bigodudo terá que solucionar o caso. O que poderia cair em uma mesmice de ser outro tabuleiro de “Detetive” requentado acabar por ganhar um refresco interessante: o terror.
Não que tente transformar a história de Christie em um slasher ou algo parecido, mas com uma trama que brinca com o sobrenatural, Branagh aproveita o confinamento no casarão em Veneza para criar a sua própria casa mal-assombrada, cheia de rangidos, jump-scares, luzes quentes e sombras.
O primeiro ato do filme e os momentos até a primeira morte, com toda a sessão mediúnica comandada pela personagem de Michelle Yeoh (A Escola do Bem e do Mal)a apresentação da família que mora ali e os outros futuros suspeitos, são feitos de forma brilhante por Branagh e o cinematógrafo Haris Zambarloukos. Os enquadramentos posicionados no alto do casarão ou nos cantos, clássicos do cinema de terror para criar o sentimento de observação são constantes, são enfileirados ao longo do filme. Planos e contra planos com os personagens posicionados nos cantos da tela, sempre com luz e sombra dividindo o quadro também. Branagh chega a fazer uma panorâmica ao melhor estilo James Wan, em Invocação do Mal, em um determinado momento para mostrar todos os suspeitos no salão principal.
Esses elementos criam algo a mais em um filme que continua, assim como os dois anteriores, tendo Poirot como grande trunfo. O sarcasmo de quem se acha (e muitas vezes é) mais inteligente que os outros, também ganha a adição da dúvida quanto ao sobrenatural e do questionamento aos próprios princípios. O diretor faz isso de forma sutil, em olhares ou reações, como quando Poirot conversa com o menino Leopold, feito pelo talentoso Jude Hill (Belfast). Entretanto, A Noite das Bruxas, segue com o mesmo problema dos filmes anteriores: a quebra do ritmo quando começa a investigação. Ao contrário do que Rian Johnson faz nos dois Entre Facas e Segredosquebrando a narrativa para dar mais agilidade do meio para o fim do segundo ato, Kenneth Branagh toma muito tempo com as conversas entre Poirot e os suspeitos. A afetação dramática acaba tirando o senso de urgência que a trama vai construindo até ali e tem em Kyle Allen e Jamie Dornan seus piores exemplos. A verdade é que a única que realmente consegue sustentar o dramalhão é Kelly Reilly (Yellowstone).
A Noite das Bruxas é o clássico whodunit que Kenneth Branagh sempre quis fazer ao adaptar Agatha Christie, mas que acabava se perdendo em meio aos elencos estelares exagerados e o excesso de CGI ruim. É simples, mas muito bem filmado. As locações reais elevam ainda mais a experiência de acompanhar Poirot nas gôndolas, no telhado de um prédio ou na ponte em Veneza.
Pode não ser um clássico definitivo para o gênero, ainda ficando para trás dos contemporâneos casos do Benoit Blanc, de Daniel Craig, mas A Noite das Bruxas é um respiro para Hercule Poirot e uma esperança de que o personagem volte sem medo de ficar amarrado ao que é conveniente.
Fonte: https://www.chippu.com.br/criticas/a-noite-das-bruxas-critica