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Mulheres negras cobram reparação histórica e fundo bilionário no Congresso

Mulheres negras pressionam o Congresso por reparação histórica e a criação de um fundo bilionário de R$ 20 bilhões, com propostas detalhadas na 2ª Marcha em Brasília.
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Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil

Mulheres negras em todo o Brasil intensificam a pressão sobre o Congresso Nacional, exigindo a implementação de medidas de reparação histórica e a criação de um ambicioso fundo bilionário, avaliado em R$ 20 bilhões. As propostas detalhadas, elaboradas no âmbito da 2ª Marcha de Mulheres Negras, que acontecerá em Brasília, buscam enfrentar um legado de quase quatro séculos de escravidão que ainda perpetua profundas desigualdades no país.

Legado da Escravidão e a Urgência da Reparação

O Brasil, uma nação marcada por aproximadamente quatrocentos anos de escravidão, começa a confrontar a magnitude desse passado e a forma como ele continua a moldar a estrutura social contemporânea. Atualmente, a população negra ainda ocupa a base da pirâmide socioeconômica, enfrentando barreiras significativas no acesso à renda, terra, moradia e direitos fundamentais. Consequentemente, este movimento não apenas interpela o governo brasileiro, mas também desafia países que lucraram substancialmente com o tráfico de africanos no século XIX a avançarem em ações de reparação.

Ruth Pinheiro, administradora e articuladora influente do movimento negro, enfatiza a dualidade essencial da reparação. Segundo ela, o objetivo primordial é o reconhecimento nacional da necessidade de reparação, seguido pela implementação de políticas públicas efetivas. Pinheiro destaca a importância crucial de a sociedade compreender a reparação como um direito inalienável, uma vez que isso permite a contextualização e a elucidação das razões pelas quais pessoas negras ainda predominam em favelas, na prostituição e no tráfico.

A Segunda Marcha Nacional e Suas Demandas Econômicas

Em 25 de novembro, Brasília se tornará o palco da 2ª Marcha de Mulheres Negras, um evento que aspira reunir um milhão de pessoas para debater a reparação e o conceito do “bem-viver”. Com o intuito de apresentar suas demandas de forma clara e estruturada, a marcha lançou o Manifesto Econômico, que articula propostas em sete eixos estratégicos. Essas incluem a criação de um fundo específico, a taxação de grandes fortunas, a redução da taxa de juros, a proteção do orçamento social, a implementação de reformas agrária e urbana abrangentes, bem como a oferta de linhas de crédito e a adoção de ações afirmativas em empresas que prestam serviços à administração pública.

De fato, as mulheres negras representam quase 60 milhões de pessoas no Brasil, constituindo um terço da população total e sendo o grupo demográfico mais severamente impactado pela pobreza, conforme dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Simone Nascimento, coordenadora do Movimento Negro Unificado (MNU), reitera que são elas as maiores vítimas de restrições ao aborto legal, feminicídios, pobreza, ausência de moradia e os salários mais baixos. Portanto, ela argumenta que a adoção de políticas que revertam esses indicadores é fundamental para se alcançar a justiça social.

Combate ao Racismo Religioso e Outras Discriminações

Um dos setores que clamam urgentemente por reparação é o dos povos de terreiro. Em um incidente recente e alarmante, a Polícia Militar de São Paulo invadiu uma escola armada após uma criança desenhar a orixá Iansã, numa atividade pedagógica. Mãe Nilce de Iansã, do Ilê Omolu Oxum e coordenadora nacional da Rede Nacional de Religiões Afro-brasileiras e Saúde (Renafro), avalia que a violência dessa abordagem expõe o persistente racismo religioso. Além disso, a discriminação se manifesta em agressões físicas a praticantes, como o apedrejamento de Kayllane, uma menina de 11 anos, ao sair de um culto em 2015, e também na depredação de centros e apreensão de objetos sagrados.

Nesse sentido, Mãe Nilce de Iansã relata que os que sofrem com o racismo religioso têm demandado, inclusive, políticas de proteção específicas. Ela descreve a profunda tristeza de construir um Egbé (casa/comunidade) e adquirir materiais com sacrifício para erguer um templo sagrado, apenas para vê-lo destruído. Por outro lado, o não reconhecimento também se configura como uma forma de racismo religioso. Ela cita como exemplo a prefeitura do Rio de Janeiro, que em março publicou e revogou, em apenas seis dias, uma resolução que reconhecia o papel dos centros e práticas tradicionais, como banhos de ervas, na promoção da saúde. Posteriormente, Mãe Nilce de Iansã ressalta a continuidade da luta para evitar a morte de mulheres pretas, que representam a maioria entre as mortes maternas por causas evitáveis.

Adicionalmente, o segmento LGBTQIA+ que participa da Marcha das Mulheres Negras também exige reparação. Bruna Ravena, do Fórum Nacional de Travestis e Transexuais Negras e Negros (Fonatrans), manifesta a expectativa de reafirmar suas vozes, denunciar o racismo contra mulheres negras trans e fortalecer a luta coletiva por políticas públicas que assegurem uma vida digna, saúde, trabalho e moradia. Em suma, Ravena conclui que a justiça social somente existirá quando a vida das mulheres trans for plenamente protegida, respeitada e celebrada.

O Retardo Brasileiro e o Contexto Internacional

Na análise de Ruth Pinheiro, o Brasil tem evitado o debate sobre reparação por cerca de trinta anos. Em 1993, ela participou da Primeira Conferência Pan-Africana sobre Reparações na Nigéria, a convite dos organizadores. Enquanto o tema progrediu em diversos estados e na Europa – por exemplo, em 2023, o jornal britânico The Guardian pediu desculpas pelo envolvimento de seus fundadores com a escravidão e anunciou um programa de reparação financeira e histórica –, no Brasil a discussão estagnou, visto que o país sequer enviou representação oficial à conferência. Diante disso, Pinheiro assumiu a responsabilidade de catalisar o movimento social brasileiro.

Os organizadores da conferência acreditavam que o reconhecimento da necessidade de reparação por parte do Brasil – que abordasse os povos escravizados, seus descendentes e os efeitos contínuos da escravidão até os dias atuais – facilitaria a compreensão e a reparação por parte do restante do mundo. Posteriormente, Pinheiro retornou ao Brasil com essa ideia, que tem sido desenvolvida por movimentos negros e serviu de base, por exemplo, para as ações afirmativas. Entretanto, na perspectiva das mulheres negras, essas medidas ainda são consideradas insuficientes.

A Insuficiência das Ações Atuais e a Proposta do Fundo Nacional

Pinheiro questiona a amplitude das ações afirmativas, argumentando que elas possuem um tema e um período definidos para atuação, enquanto os impactos do racismo são transversais e profundos. Ela indaga, por exemplo, quem irá reparar a saúde mental de uma pessoa que sofre racismo durante toda a vida, ou as mães que testemunham a perda de seus filhos em áreas periféricas e, sem oportunidades, adoecem com hipertensão, diabetes e outras doenças crônicas. Além disso, Simone Nascimento, do MNU, esclarece que, embora o crime da escravidão seja irreparável, o racismo persiste como uma ferramenta de lucro, hierarquizando vidas e determinando o acesso a melhores escolas, empregos e salários, conforme evidenciam os indicadores de escolarização e renda do IBGE.

Diante desse cenário, tramita no Congresso Nacional a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 27/24, que visa estabelecer um fundo nacional de reparação. Este fundo tem como objetivo principal captar até R$ 20 bilhões, com um aporte inicial de R$ 1 bilhão proveniente do orçamento da União, a ser direcionado para diversas ações. Entre as iniciativas previstas, incluem-se recursos para empreendedores, negócios, projetos sociais e culturais. A princípio, o mecanismo será administrado por um banco público e permitirá múltiplas formas de contribuições. São esperados aportes significativos, por exemplo, do Banco do Brasil, que, conforme denúncia do Ministério Público Federal, se beneficiou diretamente do tráfico transatlântico de escravos.