A Vila da Barca, uma vibrante comunidade de palafitas em Belém, emerge como um símbolo contundente do racismo ambiental e da profunda crise habitacional que assola as populações mais vulneráveis. Essa realidade dramática ganha destaque precisamente no período em que a capital paraense sedia a 30ª Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (COP30), expondo a desconexão entre os grandes debates globais e as necessidades prementes de quem vive nas áreas de maior risco.
A Realidade Cotidiana na Vila da Barca
Aos 77 anos, Cleonice Vera Cruz representa a memória viva da Vila da Barca, residindo na localidade há quase seis décadas. Este bairro centenário de Belém, situado às margens da baía do Guajará, é caracterizado por suas casas de madeira erguidas sobre palafitas, uma adaptação ancestral às constantes variações da maré. Ocupada por ribeirinhos desde o início do século passado, a Vila da Barca atualmente se configura como uma das maiores comunidades urbanas de palafitas de toda a América Latina.
Contrariamente à precariedade das moradias na vila, há uma notável disparidade social e econômica. Próximo dali, na região das Docas, local de destaque turístico da cidade, observa-se a opulência de prédios residenciais luxuosos. Esta área recebeu investimentos significativos em preparação para a COP30, evidenciando um contraste gritante na paisagem urbana.
Cleonice, em seu relato à Agência Brasil, descreve a fragilidade de sua casa. Ela explica que “quando dá um vento, a casa sacode”, e a passagem de alguém nas proximidades já provoca balanços perceptíveis na estrutura. Ademais, em períodos de cheia do rio e, principalmente, durante fortes chuvas, a apreensão se intensifica. A aposentada mencionou que uma recente tempestade “molhou tudinho aqui”, pois as fendas entre as madeiras são incapazes de impedir a entrada da água, deixando o interior da residência vulnerável.
Consequências da Vulnerabilidade e a Voz da Comunidade
O temor de Cleonice não se baseia em mera especulação. De fato, na madrugada de uma sexta-feira recente, uma casa na Vila da Barca desabou. Quatro pessoas, incluindo uma criança e um indivíduo com deficiência, felizmente escaparam ilesas após serem alertadas por estalos na madeira, que antecederam o colapso. Além da família desabrigada, algumas moradias vizinhas tiveram suas estruturas comprometidas, exigindo a solidariedade dos demais moradores para acolhimento.
Essa tragédia coincidiu com o encerramento da primeira semana da COP30, onde se discutiam soluções climáticas para o planeta. Tal sincronia ressalta que a crise ambiental é intrinsecamente ligada a uma crise habitacional e social, atingindo de forma mais severa aqueles que já vivem em situação de vulnerabilidade. Gerson Siqueira, presidente da Associação de Moradores da Vila da Barca, expressa essa preocupação. Ele destaca a necessidade de “defender o meio ambiente”, mas critica a pouca atenção dedicada “ao cuidado e à proteção de quem mora debaixo da copa das árvores”. Gerson pontua que “milhares de brasileiros que moram na Amazônia… não têm saneamento básico ou o têm de forma precária, e o sistema de abastecimento de água também é precário”.
Para Siqueira, embora se fale muito em transição energética, a discussão sobre o cuidado com a população permanece insuficiente. Ele questiona: “A gente precisa pensar como é que essa população vai passar por esse processo? As discussões lá na Blue Zone [da COP30] falam de financiamento, mas e a moradia? Será que a questão ambiental não passa por moradia digna?”
Racismo Ambiental: Estatísticas e Casos Reais
Um estudo da ONG Habitat para a Humanidade Brasil, divulgado na COP30, revelou dados alarmantes sobre o racismo ambiental no país. O levantamento cruzou informações sobre áreas de risco hidrológico e geológico com dados censitários de 129 cidades brasileiras, constatando que 66,58% da população residente nessas áreas é negra. Além disso, mais de um terço (37,37%) desses domicílios são chefiados por mulheres, cuja renda média, de R$ 2.127, corresponde a aproximadamente 55% da média geral das cidades analisadas. Soma-se a isso o fato de que 20,29% dos lares em risco não possuem esgoto e 2,41% carecem de coleta de lixo adequada.
Em âmbito nacional, entre 2013 e 2022, cerca de 2,1 milhões de casas sofreram danos e 107 mil foram destruídas por desastres climáticos, conforme o estudo. Raquel Ludermir, gerente de incidência política da Habitat Brasil, afirma que esses dados “permitem evidenciar a questão do racismo ambiental”, pois a maioria dos afetados são pessoas “negras, de baixíssima renda”, com predominância de mulheres chefes de domicílio e indivíduos com baixo grau de escolaridade.
Maria Isabel Cunha, conhecida como Bebel, diarista e moradora da Vila da Barca, personifica o perfil socioeconômico traçado pela pesquisa. Mãe solo de dois filhos, um deles com deficiência, Bebel está atualmente desempregada. Ela depende da pensão do filho PCD para o sustento da família, complementando a renda com faxinas esporádicas, pelas quais chega a receber apenas R$ 50. Embora goste do espírito comunitário da vila, Bebel lamenta a falta de serviços públicos que poderiam oferecer suporte no cuidado com seu filho, como um clube ou instituição educacional. Ela expressa sua dificuldade: “O dinheiro que chega não dá para a gente ajeitar a casa para mim e meu filho mais novo. Seria bom ter um emprego fixo”.
Perspectivas da Comunidade e Respostas Atuais
Apesar da proximidade com o Parque da Cidade, onde ocorreram os debates da COP30, a menos de cinco quilômetros de distância, poucos moradores da Vila da Barca pareciam plenamente cientes dos temas discutidos. Bebel, por exemplo, ficou mais impressionada com as obras de revitalização da área turística de Belém, como os armazéns históricos e a Avenida das Docas. Cleonice Vera Cruz, por sua vez, que acompanhava as notícias pela televisão, surpreendeu-se com a expressiva presença indígena na cidade, comentando com bom humor: “Não sabia que tinha tantos indígenas”.
Na Vila da Barca, aproximadamente 600 moradias de palafitas abrigam mais de mil famílias. Este setor do bairro do Telégrafo, que possui 5 mil moradores no total, também inclui construções de alvenaria em áreas já aterradas e mais urbanizadas. Recentemente, a empresa Águas do Pará iniciou obras de saneamento, um investimento de R$ 15 milhões. A primeira fase, de abastecimento de água, já foi concluída, e agora as famílias em casas de madeira contam com hidrômetros individuais. A taxa social da conta, que ainda não está sendo cobrada, será de R$ 66,42, conforme a associação de moradores. A rede de esgoto, por sua vez, deve ser finalizada até abril do próximo ano.
Não obstante os avanços em infraestrutura, a luta da comunidade por dignidade transcende a instalação de serviços básicos; ela passa, primordialmente, pela garantia de permanência. Gerson Siqueira enfatiza: “A gente está trazendo melhorias para a vila, a mitigação de um problema, mas a gente precisa dar uma destinação. Elas vão continuar ali, morando sobre palafitas, até quando? Até quando o Estado brasileiro vai permitir que essas famílias continuem morando assim?”. Ele expressa o desejo por um conjunto habitacional com moradia digna e infraestrutura adequada para que os moradores possam “desenvolver a vida delas aqui”.
Crise Climática e Habitacional: Uma Conexão Global
Apesar do drama social, a Vila da Barca mantém uma vida cultural rica e vibrante, celebrando tradicionais festas juninas, blocos carnavalescos e recebendo anualmente a imagem peregrina de Nossa Senhora de Nazaré durante o Círio, um dos maiores símbolos da fé popular paraense. Entretanto, a Habitat para a Humanidade Brasil chama a atenção para um dado global ainda pouco debatido: a intrínseca relação entre a crise climática e a crise habitacional.
Um relatório da rede global da entidade revela que somente 8% das Contribuições Nacionalmente Determinadas (NDCs), metas climáticas voluntariamente apresentadas por cada país, abordam a questão urbana, as favelas e as comunidades. Isso inclui a falta de planos e financiamento apropriados para lidar com a emergência climática que destrói moradias e infraestruturas, acentuando as crises habitacional e urbana. Raquel Ludermir defende “a possibilidade de permanência dessas comunidades, mas com melhores condições de segurança, de habitabilidade, adaptabilidade também”. Ela ressalta a importância de “fortalecer a resiliência dessas comunidades”, alertando contra “falsas soluções” que muitas vezes justificam a remoção de populações inteiras em nome de políticas de adaptação climática, o que considera injusto.



