A Câmara dos Deputados aprovou um Projeto de Decreto Legislativo (PDL) que visa sustar a Resolução 258 do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda), a qual orienta sobre o atendimento de crianças e adolescentes vítimas de violência sexual. Em resposta, o Conanda qualificou a iniciativa parlamentar como uma tentativa de disseminar “pânico moral” e um claro ataque aos direitos já estabelecidos pela legislação brasileira. Além disso, a vice-presidenta do Conanda, Marina De Pol Poniwas, enfatizou que tal medida representa uma afronta aos direitos fundamentais desses jovens.
Conanda Alerta para “Pânico Moral” e Proteção de Direitos
Projetos que visam dificultar o acesso ao aborto legal para crianças e adolescentes que foram vítimas de violência sexual procuram, na verdade, “espalhar pânico moral”. Esta é a avaliação de Marina De Pol Poniwas, vice-presidenta do Conanda, que vê nessas ações uma tentativa de enfraquecer o direito ao aborto legal no Brasil. Conforme sua análise, o Projeto de Decreto Legislativo 03 de 2025 (PDL 03/2025), que a Câmara dos Deputados aprovou recentemente, infringe diretamente os direitos essenciais.
Marina De Pol Poniwas argumenta que a discussão acerca do aborto legal é, primariamente, uma questão de saúde pública, e não deveria ser pauta do Poder Legislativo. Ela lamenta que não se permita que órgãos como o Conanda exerçam suas competências para garantir a proteção efetiva de crianças e adolescentes. Ademais, a psicóloga, que ocupou a presidência do Conselho no ano anterior, assina a Resolução 258, o principal alvo do PDL aprovado. Contudo, é fundamental ressaltar que a resolução permanece em vigor, uma vez que o projeto ainda necessita da aprovação do Senado Federal para adquirir validade.
Contexto e Conteúdo da Resolução 258
O Conanda sentiu a necessidade de elaborar a Resolução 258 após a divulgação de dados alarmantes. Em 2023, o Brasil registrou um número recorde de estupros, o que intensificou a preocupação do Conselho. Além disso, a resolução surgiu como uma resposta a outras propostas legislativas que buscavam restringir o acesso ao aborto legal, como um Projeto de Lei que pretendia equiparar a interrupção da gravidez ao crime de homicídio, mesmo em situações já autorizadas por lei. Marina De Pol Poniwas informa que, presentemente, há 13 projetos protocolados na Câmara dos Deputados contra a Resolução, que também enfrenta questionamentos judiciais.
A vice-presidenta reitera que o aborto legal não constitui crime no Brasil. O Código Penal já prevê essa possibilidade desde 1940. Simultaneamente, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) se apresenta como um marco civilizatório protetivo em nossa sociedade. O principal objetivo da Resolução, portanto, é guiar o sistema de garantia de direitos sobre a melhor forma de aplicar o arcabouço legal existente, garantindo o acesso a um direito previsto há décadas, mas que, na prática, frequentemente é impedido.
A Resolução 258 não se limita apenas ao direito ao aborto legal; ela abrange todo o processo de atendimento a crianças e adolescentes vítimas de violência sexual, buscando a salvaguarda de seus direitos. O documento especifica, por exemplo, a necessidade de escuta especializada para as vítimas e a priorização do atendimento de saúde. Com efeito, a resolução orienta que, em casos de gravidez resultante de estupro ou estupro de vulnerável, a vítima não precisa apresentar boletim de ocorrência ou decisão judicial para ter direito ao aborto legal, conforme a legislação. Adicionalmente, ela instrui que a notificação de casos de violência sexual, com a identificação da vítima, deve ser feita ao Conselho Tutelar, que então aciona o sistema de Justiça, exceto em situações específicas. Em consonância com o texto, a criança ou adolescente vítima deve ser informada de seus direitos de maneira adequada, e sua vontade expressa deve prevalecer em casos de discordância com pais ou representantes legais. Marina De Pol Poniwas enfatiza que o Conanda não “criou” nenhuma dessas diretrizes; ao contrário, a Resolução foi editada para combater barreiras ilegais impostas, como a exigência de boletim de ocorrência, e para garantir um cuidado célere, humanizado e não revitimizante.
Mobilização Social e Desinformação: Barreiras ao Acesso
Organizações que defendem os direitos das crianças e das mulheres também se posicionaram contra o projeto de decreto legislativo. Desse modo, lançaram um abaixo-assinado no âmbito da campanha “Criança não é Mãe”, que ganhou notoriedade durante os protestos contra o “PL do Estupro”. A campanha planeja mobilizar atos no dia 11 de junho, com manifestações confirmadas no Rio de Janeiro, São Paulo, Santa Catarina e Espírito Santo. Laura Molinari, codiretora da campanha “Nem Presa Nem Morta”, parte da iniciativa “Criança não é Mãe”, lembra que o movimento feminista luta há aproximadamente duas décadas contra projetos que tentam endurecer a legislação sobre o aborto. Ela observa que essas propostas tendem a se intensificar em períodos eleitorais, integrando o “pacote moral” de candidaturas e políticos de extrema direita. No entanto, ela salienta um problema real ignorado: o grande número de meninas que sofrem violência e engravidam, sendo a gravidez, em muitos casos, um desfecho da violência sexual. As meninas, aliás, são as maiores vítimas dessa violência no Brasil.
Até o momento, nenhum projeto conseguiu revogar as permissões estabelecidas pelo Código Penal de 1940, que autoriza a interrupção da gravidez em casos de violência sexual e risco de vida para a gestante. Além disso, em 2012, o Supremo Tribunal Federal estendeu essa excepcionalidade aos casos de anencefalia. A legislação brasileira, por conseguinte, nunca impôs a exigência de boletim de ocorrência ou processo judicial para a realização do procedimento, tampouco estabeleceu limite de idade gestacional. Entretanto, Laura Molinari adverte que esses ataques e a disseminação de informações falsas criam uma confusão proposital que afasta crianças e mulheres dos serviços de saúde, além de gerar insegurança entre os profissionais da área.
A realidade é preocupante: atualmente, menos de 4% dos municípios brasileiros oferecem serviços de aborto legal. Anualmente, o país registra uma média de 2 mil abortos legais, sendo menos de 200 realizados em meninas estupradas, enquanto 30 meninas com menos de 14 anos dão à luz todos os dias. Portanto, essa confusão normativa constitui um obstáculo significativo à efetivação do aborto legal, e a resolução do Conanda surgiu precisamente para organizar o que já está na lei, visto que, na prática, o acesso é quase inexistente. Uma pesquisa recente do Instituto Patrícia Galvão revelou que seis em cada dez mulheres que foram vítimas de violência sexual antes dos 14 anos não relataram o abuso, e apenas 27% confiaram em algum familiar. Quase a totalidade dos entrevistados (96%) considera que meninas de até 13 anos não possuem maturidade física e emocional para serem mães. Outro levantamento de 2020 do mesmo Instituto mostrou que 82% dos entrevistados são favoráveis ao direito ao aborto em casos de estupro. Para 94% dos participantes, o aborto deveria ser permitido em situações como a da menina de 10 anos que engravidou após ser violentada e precisou viajar a Recife para realizar o procedimento. Laura Molinari acredita que a reação dos movimentos sociais tem contribuído para esclarecer à opinião pública os marcos legais do aborto no Brasil, embora a oportunidade também seja aproveitada para espalhar inverdades, o que agrava a falta de informação e, consequentemente, dificulta o acesso ao serviço.
Ações Parlamentares em Defesa da Resolução
No Congresso, parlamentares que se opõem à sustação da resolução também reagiram. A deputada federal Jack Rocha (PT-ES), com o apoio de outros 60 deputados, protocolou um projeto de lei que visa conferir força legal às diretrizes do Conanda, mantendo sua redação original intacta. Em um vídeo divulgado em suas redes sociais, a deputada explicou que o propósito é “transformar em lei o que nunca deveria ter sido posto em dúvida: que criança não é mãe, que estuprador não é pai e que a infância precisa de proteção e não de retrocesso”. Ela complementou ainda que, ao decidir sustar a resolução, a Câmara não apenas revoga um ato administrativo, mas “rasga um pacto civilizatório” estabelecido pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, forçando meninas vítimas de estupro a uma gravidez que ela classifica como tortura. Em conclusão, as discussões e mobilizações refletem a complexidade do tema e a constante disputa em torno dos direitos sexuais e reprodutivos de crianças e adolescentes no Brasil.



