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Única PM a depor sobre Paraisópolis: “Foi legítima defesa”

A policial militar Aline Ferreira Inácio, única a depor no caso Paraisópolis em São Paulo, alegou legítima defesa da corporação na ação que matou nove jovens em dezembro de 2019.
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Foto: Rovena Rosa/Agência Brasil

A policial militar Aline Ferreira Inácio, única a depor no controverso caso de Paraisópolis, em São Paulo, defendeu com firmeza a atuação da corporação. Ela alegou legítima defesa na operação que culminou na trágica morte de nove jovens durante um baile funk em dezembro de 2019. O depoimento foi prestado no Fórum Criminal da Barra Funda, na capital paulista, em um cenário de intensa expectativa e protestos.

A Versão da Policial Militar no Fórum

No decorrer de sua declaração, Aline Ferreira Inácio, que ainda está em atividade, reafirmou que a ação policial conhecida como Massacre de Paraisópolis foi uma resposta necessária. Ela destacou que, curiosamente, nenhum dos policiais envolvidos na operação sofreu ferimentos graves. Além disso, no momento dos fatos, Aline exercia a função de comandante do efetivo que atuava no Baile da DZ7, na comunidade de Paraisópolis.

É importante ressaltar que, assim como outros onze policiais, Aline enfrenta acusações de homicídio na Justiça e pode ser levada a júri popular após a conclusão das audiências de instrução. No entanto, sua postura difere da maioria dos envolvidos; com exceção da tenente, todos os demais policiais optaram por exercer o direito ao silêncio, recusando-se a testemunhar. Essa decisão, já esperada pela parte acusatória, visava supostamente evitar possíveis inconsistências nos relatos. Paralelamente à audiência, centenas de jovens, em sua maioria negros, realizaram um protesto em frente ao Fórum, expressando solidariedade às mães das vítimas e clamando por justiça.

O Contraponto das Vítimas e as Contradições Apontadas

A policial reiterou em seu depoimento a versão apresentada anteriormente por seu colega Rodrigo Cardoso da Silva ao juiz Antônio Carlos Pontes de Souza, responsável pelo caso. Segundo Silva, testemunha arrolada por seis dos policiais acusados, uma segunda viatura foi acionada para proteger outros agentes que, supostamente, estariam sob ataque de frequentadores do baile. Posteriormente, a Polícia Militar justificou o reforço alegando risco representado por dois ocupantes de uma motocicleta. A corporação afirmou que os suspeitos chegaram efetuando disparos, o que teria deflagrado o tumulto e a correria generalizada entre o público presente.

Por outro lado, os familiares das vítimas, seus advogados e a Defensoria Pública de São Paulo, responsável pela acusação no processo, contestam veementemente essa narrativa. Eles sustentam que os jovens foram deliberadamente encurralados em uma emboscada que os conduziu a uma viela estreita, onde as mortes ocorreram. Adicionalmente, em 2023, uma biomédica da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) apresentou ao juiz um laudo que atestava a asfixia mecânica como a causa das mortes, refutando assim a hipótese de pisoteamento inicialmente sugerida pelos policiais. Este laudo médico se tornou um ponto crucial de divergência entre as versões apresentadas.

Negação de Cerco Intencional e Contexto Político

A policial militar negou categoricamente que o direcionamento das vítimas ao local da tragédia tenha sido intencional ou que houvesse bloqueios planejados para impedir rotas de fuga. Ela argumentou ser “impossível” realizar tal ação, uma vez que “não conhecia todos os becos e vielas” da extensa região. Ainda assim, a agente acrescentou que “a tragédia teria sido muito maior, se fosse feita com esse intuito”, defendendo que uma ação intencional de cerco teria resultados ainda mais catastróficos.

É fundamental contextualizar que o Massacre de Paraisópolis ocorreu em um período em que o então governador João Doria intensificava as ações contra os bailes funk na capital paulista. Esta política foi amplamente criticada por movimentos sociais e especialistas, que a interpretavam como uma criminalização do funk e das comunidades periféricas. Entre janeiro e dezembro de 2019, por exemplo, a Polícia Militar realizou cerca de 7,5 mil operações sob a justificativa de aplicar a lei do silêncio e combater o tráfico de drogas e outros delitos.

Questões sobre Socorro e Treinamento Policial

Os advogados das famílias das vítimas levantaram, durante o processo, a possibilidade de omissão de socorro, além do cerco que teria provocado a morte dos jovens por asfixia. Questionada sobre esse ponto, a policial afirmou ter seguido rigorosamente o protocolo previsto em resolução da corporação, evitando exceder suas atribuições para não agravar o estado das vítimas. Entretanto, ela reconheceu que o treinamento em primeiros socorros oferecido pela PM é “superficial, feito apenas durante a formação e não de forma contínua”.

Aline justificou que “ali não era uma situação básica”, explicando que, em sua avaliação, os primeiros-socorros não seriam suficientes para o atendimento necessário. Ela mencionou, ainda, que chegou a prestar atendimento a uma das vítimas na viatura que dirigia, buscando demonstrar seu empenho na situação.

As Próximas Etapas Judiciais do Caso

De acordo com a advogada Rosa Cantal, integrante da equipe de defesa das famílias das vítimas, tanto a acusação quanto a defesa apresentarão agora ao juiz manifestações escritas, nas quais reforçarão suas respectivas argumentações. Posteriormente, o magistrado poderá pronunciar os réus, ou seja, encaminhar o caso ao Tribunal do Júri, reconhecendo a legitimidade da denúncia do Ministério Público. Nesse cenário, considera-se que o caso envolve um crime doloso contra a vida, o que significa que há indícios de intenção de matar ou de assumir o risco de fazê-lo.

Contudo, caso o magistrado conclua que não houve dolo, ele poderá reclassificar o crime como culposo, absolver sumariamente os acusados ou considerar que a autoria e a materialidade do crime não foram comprovadas. Segundo Cantal, ao reconhecer o crime como doloso, o juiz pode enquadrá-lo em duas possibilidades: o dolo eventual, hipótese apresentada na denúncia, ou o dolo direto. A advogada esclareceu que “o dolo eventual é quando os policiais assumem o risco” de um resultado letal com suas ações.