A Universidade Federal Fluminense (UFF) está na vanguarda do combate aos desafios impostos pelas mudanças climáticas no Brasil, utilizando a inteligência artificial (IA) para identificar as regiões mais suscetíveis a eventos extremos. Por meio do projeto Riskclima, a instituição não apenas mapeia as áreas vulneráveis e os problemas sociais decorrentes, mas também propõe soluções adaptadas a cada localidade, buscando com veemência subsidiar políticas públicas urgentes e eficazes.
O Projeto Riskclima: Mapeando Vulnerabilidades no Brasil
O projeto Riskclima, coordenado pela UFF, emprega a inteligência artificial em conjunto com outras ferramentas para um mapeamento abrangente das áreas brasileiras que enfrentam maior risco diante dos fenômenos climáticos extremos e, consequentemente, dos problemas sociais gerados. Com base nessas descobertas, os pesquisadores desenvolvem propostas de intervenção específicas, visando aprimorar a qualidade de vida da população. Por vezes, as soluções podem ser surpreendentemente simples, como a implementação de alertas contínuos para hidratação em comunidades. Conforme explica Márcio Cataldi, coordenador do Riskclima e professor do Laboratório de Monitoramento e Modelagem do Sistema Climático (Lammoc) da UFF, uma iniciativa tão básica pode, na verdade, salvar vidas, especialmente em regiões castigadas por ondas de calor intensas, onde a desidratação contribui para o aumento de casos de infarto, principalmente entre idosos.
Financiado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), o projeto Riskclima foi iniciado em 2022 e tem sua conclusão prevista para 2026. Ao longo de suas atividades, os pesquisadores têm analisado o comportamento do clima nas últimas seis décadas e elaborado projeções futuras. O objetivo primordial do projeto, conforme destacado por Cataldi, é a criação de um relatório executivo. Este documento, então, buscará contribuir substancialmente para a formulação de políticas públicas ambientais.
A Inteligência Artificial como Ferramenta Estratégica
Os pesquisadores do Riskclima dedicam-se a investigar os fenômenos extremos mais frequentes e intensos, determinando como estes podem gerar riscos conforme a vulnerabilidade de cada área. A partir da avaliação dos perigos predominantes em cada zona analisada do país, eles realizam um levantamento detalhado das ações cabíveis para mitigar os impactos climáticos. Entre as ferramentas cruciais utilizadas, a inteligência artificial se destaca por sua capacidade de adaptar os modelos climáticos globais do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) à realidade contemporânea brasileira. Enquanto os modelos do IPCC oferecem projeções climáticas para as próximas duas décadas, a IA é empregada especificamente para selecionar os modelos mais eficazes na previsão do clima atual.
Adicionalmente, a IA desempenha um papel fundamental no refinamento das previsões. Por exemplo, se um modelo demonstra simulações satisfatórias, mas subestima a intensidade da chuva, a inteligência artificial absorve esse conhecimento e o aplica em cenários subsequentes, aprimorando continuamente a precisão das projeções climáticas.
Ondas de Calor Ameaçam a Região Norte
Os resultados iniciais da pesquisa revelam cenários preocupantes em diversas regiões do Brasil. Na Região Norte, que em breve sediará a 30ª Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas (COP30) em Belém, no Pará, o estudo tem observado um aumento significativo e inesperado de ondas de calor intensas. “A gente tem observado o aumento das ondas de calor e desenvolveu durante o projeto um índice de onda de calor, que tinha aplicado na Europa”, relatou Cataldi em entrevista à Agência Brasil. Ele prosseguiu, explicando que, ao aplicar esse índice ao contexto brasileiro, “para nossa surpresa, a região onde as ondas de calor estão mais intensas nos últimos dez anos foi a Região Norte”. Embora o fenômeno tenha crescido em todo o território nacional, o Norte registrou o maior incremento, um dado que pegou os pesquisadores de surpresa. Ademais, esta é a região com menor capacidade de adaptação, o que agrava a situação.
Nesse sentido, Cataldi defende uma abordagem multifacetada para a Região Norte, envolvendo diversos níveis de conhecimento. Ele ressalta que as populações ribeirinhas e tradicionais, acostumadas a lidar com a variabilidade natural do clima, frequentemente rejeitam soluções consideradas invasivas. Portanto, não é viável simplesmente introduzir ventiladores ou geradores elétricos. É imperativo, antes de tudo, trabalhar com essas comunidades por meio da educação ambiental, esclarecendo que o padrão de variabilidade climática ao qual estavam habituadas não é mais o mesmo. “Todos os antepassados deles sempre lidaram com as oscilações do clima, mas a forma como o clima está oscilando hoje é diferente”, frisou o professor. Consequentemente, essas populações necessitam de adaptações tecnológicas ou criativas que sejam culturalmente aceitáveis e adequadas ao seu modo de vida, representando um desafio inicial para o projeto.
Enchentes Persistentes no Sul do País
Em contrapartida, na Região Sul do Brasil, a principal preocupação reside no aumento das chuvas intensas, como evidenciado por eventos como o tornado que atingiu o Paraná e as enchentes que devastaram o Rio Grande do Sul em 2024, resultando em 184 mortes. O projeto Riskclima analisa o crescimento dos bloqueios atmosféricos nessa área. “Isso significa que quando a gente tem um bloqueio na Região Sudeste, as frentes frias não conseguem avançar para o Sudeste. Elas ficam paradas no Sul, como aconteceu em abril e início de maio do ano passado”, explicou Márcio Cataldi, referindo-se à tragédia gaúcha. O pesquisador ainda observou que este fenômeno ocorreu novamente este ano, embora com menor intensidade. Todavia, a principal apreensão é que “esse parece ser o padrão normal a partir de agora”, exigindo, portanto, um levantamento minucioso de áreas de inundação.
Em Porto Alegre, por exemplo, muitas das áreas alagadas são naturalmente propícias a inundações devido à sua geografia. Cataldi pontuou que a tragédia na capital gaúcha foi agravada pela falta de manutenção e inoperância das comportas. Ele salientou a necessidade urgente de lidar seriamente com esses problemas, criando e implementando políticas públicas robustas. Ademais, é crucial trabalhar com a legislação para assegurar a continuidade dessas políticas. “Não pode ser uma coisa de um governo porque aí chega outro e diz que isso aqui não me interessa. Não pode ser”, enfatizou, defendendo a perenidade das ações climáticas.
Seca Agrava Cenário no Sudeste e Centro-Oeste
Nas regiões Sudeste e Centro-Oeste, a seca configura-se como o desafio predominante, motivada pela escassez de chuvas. Um artigo publicado pelos pesquisadores do Riskclima na renomada Revista Nature revela que o primeiro e mais grave passo da seca é a diminuição da umidade do solo, um fenômeno observado ao longo de anos consecutivos com índices pluviométricos abaixo da média. Para comprovar essa tendência, foram utilizados sensores de satélites da NASA. Márcio Cataldi ressaltou que Sudeste e Centro-Oeste representam a região mais populosa do país, detentora da maior área agrícola e dos grandes reservatórios de energia.
Consequentemente, o pesquisador salienta a necessidade imperativa de que a ciência e os tomadores de decisão considerem a água como uma prioridade nacional. “Cada setor exige uma solução específica”, afirmou. É fundamental, por exemplo, otimizar a irrigação, a geração de água a partir de aquíferos e a produção de energias alternativas e renováveis, como a eólica e a solar, ao mesmo tempo em que se preserva a geração hídrica. Cataldi enfatizou que a energia hídrica deve ser reservada para momentos de escassez de outras fontes de base, visto que os reservatórios não atingem níveis elevados há muito tempo. A questão do abastecimento de água para consumo humano e animal, bem como para a agricultura, demanda uma série de soluções interligadas. Portanto, a seca e seu agravamento são pontos cruciais a serem tratados com máxima urgência, concluiu Cataldi. No Nordeste, por sua vez, especialmente na Caatinga e no semiárido, o problema central é o avanço de um processo de desertificação, transformando uma região que já era seca em um ambiente ainda mais árido.
Impactos da Crise Climática na Saúde Pública
Os desafios climáticos delineados acarretam também severos impactos na saúde pública, cujas manifestações variam regionalmente. Por exemplo, os bloqueios atmosféricos, mais frequentes na Região Sudeste, estão sendo estudados pela pesquisa da UFF para determinar sua influência na qualidade do ar, visto que aprisionam poluentes próximos à superfície. “Um ponto que a gente vai ver é uma piora da qualidade do ar, com o aumento desses bloqueios”, prevê Cataldi. Outro ponto crítico é a questão do calor excessivo. Durante episódios de ondas de calor, uma perda significativa de água corporal torna o sangue mais viscoso, facilitando a coagulação e, consequentemente, aumentando o risco de trombose e ataques cardíacos. Essa desidratação abrupta é um fator alarmante.
O professor exemplificou a gravidade da situação mencionando o número chocante de mortes por desidratação na Europa, onde, na última onda de calor registrada em 2023, ocorreram 70 mil óbitos. “A gente tem que tomar cuidado, porque por mais que o Brasil esteja acostumado com as ondas de calor, é preciso trabalhar para essa hidratação, principalmente com os idosos”, alertou. Márcio Cataldi sublinhou que cuidadores e responsáveis por idosos devem ser informados sobre a necessidade de hidratação constante para todos. Ele admitiu que este é um grande desafio, pois exige um alerta maior para aspectos do cotidiano.
Próximos Passos e a Urgência de Ação
Antes do encerramento oficial do projeto Riskclima, agendado para 2026, será entregue às autoridades brasileiras um relatório executivo. Este documento conterá propostas de soluções concretas, visando impulsionar a tomada de providências e a elaboração de políticas públicas que contribuam para mitigar os diversos problemas climáticos. “O importante é sentar com as autoridades, mostrar a urgência de implementação dessas políticas e nos colocar à disposição, como universidade pública, para ajudar a começar a mitigar os problemas climáticos”, reiterou Cataldi. Ele enfatizou que “não dá pra esperar”, pois os perigos climáticos já são uma realidade presente.
O objetivo primordial, salientou o pesquisador, é empregar o nível de conhecimento disponível para adaptar soluções que possam começar a gerar efeitos positivos, isto é, melhorar os problemas climáticos e iniciar o processo de mitigação. Cataldi ainda esclareceu que, mesmo que os países cessassem as emissões de gases de efeito estufa hoje, o clima não retornaria imediatamente ao seu estado anterior. “Ainda demoraria duas décadas para retornar o equilíbrio”, explicou. Diante disso, a meta do projeto é “tentar mostrar onde as ações de mitigação deveriam ser prioritárias”, direcionando esforços para os pontos de maior impacto e urgência.



