A vacinação infantil no Conjunto de Favelas da Maré, na Zona Norte do Rio de Janeiro, sofre uma queda alarmante de 90% nos dias em que ocorrem operações policiais. Um estudo recente, realizado pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) em colaboração com a organização Redes da Maré, revela que essa drástica redução acontece mesmo quando as unidades de saúde permanecem abertas. Os dados, que expõem o impacto dos confrontos armados no acesso à imunização em áreas periféricas, indicam ainda uma retração de 82% nas aplicações, sublinhando o efeito difuso da violência na rotina dos moradores e profissionais de saúde.
Impacto Drástico nas Imunizações
A pesquisa detalha a severidade do problema. Em 2024, as forças de segurança realizaram operações em alguma das comunidades do complexo durante 43 dias. Desses, em pelo menos 22 dias, houve a interrupção do funcionamento de uma ou mais unidades de saúde. Consequentemente, a média de crianças vacinadas nesses dias de ação policial foi de apenas nove, um número que contrasta acentuadamente com as 89 imunizações registradas em dias sem operações. Esta diferença representa uma redução de 90% na cobertura vacinal. Além disso, a média diária de doses aplicadas despencou de 187 para apenas 20 durante os períodos de confronto.
Adicionalmente, o levantamento analisou o primeiro semestre de 2025, corroborando a tendência preocupante. Nesse período, a média de doses aplicadas em dias normais atingiu 176,7, atendendo cerca de 76 crianças. Por outro lado, nos dias com presença das forças de segurança, foram administradas, em média, apenas 21,1 doses, imunizando cerca de 11 crianças por dia. É importante ressaltar que a queda foi de 82% tanto no número de doses quanto no de crianças vacinadas, mesmo quando as unidades de saúde mantiveram suas portas abertas durante as operações. Este fenômeno, de acordo com o estudo, sugere um efeito indireto das operações, criando uma atmosfera de medo e tensão que limita a circulação de moradores e profissionais, dificultando o acesso essencial às unidades de saúde.
O Contexto da Maré e Seus Desafios
A Maré é um dos maiores conjuntos de favelas do Brasil, composta por 15 comunidades e abrigando aproximadamente 125 mil habitantes. Mais da metade dessa população tem menos de 30 anos, sendo que 12,4% são crianças na faixa etária de 0 a 6 anos, o público mais vulnerável à falta de vacinação. Atualmente, o complexo conta com seis unidades básicas de saúde, que oferecem não apenas as vacinas essenciais previstas no calendário do Sistema Único de Saúde (SUS), mas também uma gama de outros serviços de assistência.
Entretanto, a complexidade da região se agrava com outros desafios. A imunidade de rebanho, por exemplo, torna-se um fator crítico em um território densamente povoado como a Maré, que enfrenta problemas de saneamento básico. A ausência de vacinação compromete essa proteção coletiva, aumentando a circulação de agentes infecciosos e, consequentemente, o risco de surtos e epidemias. Tal situação expõe ainda mais a população a doenças infecciosas.
Segurança Pública Versus Saúde Infantil
Flávia Antunes, chefe do escritório do Unicef no Rio de Janeiro, enfatiza que o modelo atual de política de segurança pública falha em ser protetivo à infância. Segundo ela, este modelo age como um determinante social da saúde, impedindo que as crianças exerçam o direito fundamental de receber vacinas cruciais contra doenças como pólio, sarampo e coqueluche. Antunes também adverte que a falha na vacinação de crianças pequenas não afeta apenas os imunizados, mas coloca em risco toda a comunidade.
Em complemento a essa perspectiva, Carolina Dias, coordenadora do eixo Direito à Saúde da ONG Redes da Maré, destaca que essa conjuntura aprofunda a desigualdade enfrentada pelos moradores da Maré e de outras regiões periféricas. Essas comunidades vivem sob a constante ameaça de confrontos armados, uma realidade distinta da vivenciada em outras localidades, o que impacta diretamente sua qualidade de vida e saúde. Para Dias, quando a política de segurança se sobrepõe ao acesso ao direito à saúde, surge um problema fundamental. Ela questiona, portanto, como é possível construir políticas públicas de forma que um setor não seja mais importante que o outro, garantindo que os direitos desses moradores não sejam negados.
As Consequências da Perda Vacinal
A perda de oportunidades de vacinação constitui uma das maiores preocupações entre os especialistas da área da saúde. Isabela Ballalai, diretora da Sociedade Brasileira de Imunizações, ressalta que a dificuldade de acesso aos postos de vacinação é um dos principais fatores que impactam a imunização no Brasil. Além disso, a rotina corrida das famílias, que muitas vezes não conseguem dedicar múltiplos dias para levar as crianças às salas de vacina, agrava essa situação.
Conforme Ballalai, não se pode perder a oportunidade de vacinar. Uma chance perdida pode significar que a criança não retornará ou só o fará muito tempo depois. Todas as vacinas são cruciais contra doenças graves. Mesmo condições como a catapora, frequentemente subestimada, podem levar à hospitalização e até à morte. A vacinação foi fundamental para erradicar muitas dessas doenças que causavam grande mortalidade no passado. Contudo, se a imunização for interrompida, vírus e bactérias podem ressurgir, como já se observa com o sarampo, representando uma ameaça séria à saúde pública.
Recomendações e Caminhos Futuros
Diante dos danos observados no estudo, Unicef e Redes da Maré formularam uma série de recomendações para minimizar os impactos. Em primeiro lugar, solicitam a redução da violência armada e exigem que as unidades de saúde sejam protegidas. Além disso, demandam que o impacto dessas operações nos serviços essenciais seja devidamente considerado no planejamento das ações de segurança.
Para as crianças que não foram vacinadas, as organizações sugerem a implementação de “vacinação em espaços intersetoriais”, utilizando modelos combinados que incluem escolas, Centros de Referência de Assistência Social (Cras) e Centros de Referência Especializados de Assistência Social (Creas), além de visitas domiciliares. A coordenadora Carolina Dias reforça que, idealmente, essas ações não seriam necessárias. Contudo, na atual situação, é fundamental a “busca ativa” das crianças com vacinação atrasada. A pesquisa já evidenciou a importância da atuação dos agentes comunitários de saúde nesse processo, sendo, portanto, essencial fortalecer esses profissionais para que continuem garantindo o acesso à vacinação e à saúde de maneira abrangente.
A chefe do escritório do Unicef no Rio de Janeiro, Flávia Antunes, conclui exigindo uma presença qualificada do Estado nessas localidades. Segundo ela, essa presença precisa de planejamento rigoroso, protocolos claros e uma articulação eficaz com os setores de saúde e assistência social. Flávia Antunes defende a superação do “falso dilema” de que a atuação policial violenta, que interrompe serviços de saúde, é a única alternativa à ausência total do Estado, buscando um modelo que proteja e sirva à comunidade.



