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Violência sexual: 87% temem por meninas, mas casa ainda é o maior perigo

87% dos brasileiros temem a violência sexual contra meninas, mas pesquisa da Plan Brasil alerta que, apesar da internet ser vista como maior ameaça, o perigo principal ainda está em casa.
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Foto: Marcelo Casal/Agência Brasil

A violência sexual emerge como a principal preocupação entre os brasileiros quando o assunto são as meninas, com 87% da população identificando-a como o tipo de violação que mais as vitima. Além disso, 43% consideram esta a forma de violência mais comum no país. Entretanto, uma pesquisa recente da Plan Brasil, desenvolvida pelo Instituto QualiBest, revela uma contradição alarmante: enquanto a internet é percebida como o maior perigo, o lar continua sendo o ambiente onde a maioria dos abusos ocorre.

Os dados foram divulgados em celebração ao Dia Internacional da Menina, 11 de outubro, e trazem à luz diversas facetas da vulnerabilidade feminina. Por exemplo, a pesquisa não se limitou à violência sexual, mas também destacou a violência física, a psicológica/emocional e a online — esta última abrangendo cyberbullying, assédio e exposição indevida de imagens na internet. Ademais, a gravidez na adolescência, muitas vezes uma consequência direta de estupro, foi apontada por 56% dos respondentes como uma preocupação significativa.

O estudo coletou informações de 824 pessoas de todas as classes sociais e regiões do Brasil, sendo 433 mulheres e 381 homens, por meio de formulários online. Um dado notável é que 90% dos participantes reconhecem a adultização de meninas como uma forma de violência; especificamente, 61% consideram-na totalmente uma violência e 29% a veem como uma violência parcial.

Percepções e Outras Formas de Violência Ignoradas

Apesar do foco em violências mais explícitas, Ana Nery Lima, especialista em gênero e inclusão da Plan Brasil, ressalta a baixa menção a outras violações cruciais. Por exemplo, a falta de acesso à educação foi citada por apenas 36% dos entrevistados, enquanto o casamento infantil apareceu com 43%, o trabalho infantil com 46% e a negligência com 48%. Conforme Ana Nery, a violência de gênero vai muito além da agressão física, englobando uma gama de atos que podem culminar em violência física e feminicídio.

A especialista enfatiza a importância de as vítimas reconhecerem o tipo de violência sofrida para realizar denúncias eficazes. Similarmente, compreender o ciclo da violência, caracterizado pelo aumento da tensão, o ato violento e o subsequente período de “lua de mel”, é fundamental para que as vítimas consigam romper os laços com seus agressores. Em um cenário geral, mais da metade dos entrevistados, 60%, avalia que as meninas estão “muito mais vulneráveis” hoje do que há uma década, percepção que se intensifica entre pais e mães, atingindo 69%.

O Ambiente Digital e Suas Armadilhas

No que diz respeito ao ambiente digital, a maioria quase unânime, 92%, dos mais de 800 respondentes acredita que a internet e as redes sociais aumentam a vulnerabilidade das meninas. Igualmente, 51% dos participantes revelaram que seus filhos e filhas menores de 18 anos possuem perfis em redes sociais. Entre as plataformas mais utilizadas, destacam-se Instagram (80%), WhatsApp (75%), TikTok (57%) e YouTube (49%). Embora o Facebook tenha uma presença mais antiga, ele ainda registra 47% de crianças e adolescentes, enquanto Kwai (27%) e X (antigo Twitter, 13%) fecham a lista.

A preocupação se aprofunda com o compartilhamento de imagens. Dos 359 entrevistados, 74% afirmaram publicar fotos de seus filhos menores de 18 anos nas redes. Destes, 27% o fazem frequentemente em perfis fechados, visíveis apenas para amigos e familiares. Por outro lado, 33% publicam “raramente e de forma controlada”, e 6% usam perfis abertos, mas com medidas para preservar a imagem dos filhos, como restringir comentários. Preocupantemente, 8% sobem fotos sem nenhuma restrição especial. Diante desse quadro, 92% do total de participantes apoiam a responsabilização de adultos que lucram com a exposição online de meninas ou as colocam em risco no meio digital.

A Contradição: O Lar Como Principal Ameaça

Um dos achados mais discutíveis da pesquisa é que a maioria da população, 83%, aponta a internet como o ambiente mais perigoso para as meninas, percentual significativamente maior do que os 33% que veem as próprias casas como ameaçadoras. Essa proporção aumenta ligeiramente para 37% entre as mulheres entrevistadas. Entretanto, essa percepção contrasta drasticamente com estatísticas que consistentemente demonstram que a maior parte da violência de gênero, seja contra meninas ou mulheres adultas, ocorre dentro de suas residências e é perpetrada por pessoas conhecidas, incluindo familiares e parceiros românticos, atuais ou anteriores.

Juliana Cunha, diretora da SaferNet Brasil, elucida essa discrepância. Ela explica que se trata de uma questão culturalmente arraigada na sociedade brasileira, que leva os lares a serem considerados menos ameaçadores do que ruas e bairros (53%) ou o transporte público (47%). Ana Nery Lima corrobora, afirmando que a percepção de risco ainda está muito ligada ao imaginário do “adulto estranho”, negligenciando fontes de risco mais frequentes, como pares da mesma idade, adolescentes colegas de escola e, principalmente, indivíduos de confiança ou membros da própria família.

Essa crença equivocada pode, inadvertidamente, tornar pais e mães mais suscetíveis, pois permitir o acesso a fotos em redes sociais não garante proteção efetiva, visto que amigos e até familiares podem ser abusadores ou agressores, alerta Ana Nery. Em suma, a especialista reforça que a violência não é produto de um “pedófilo estranho no porão”, mas sim de indivíduos próximos, como familiares, professores ou pessoas com prestígio. Ana Nery Lima conclui que a realidade do país só mudará quando a sociedade reconhecer que pode, ela própria, produzir e reproduzir essas violências, machismos e misoginia, que infelizmente têm aumentado.

Deepfake e a Necessidade de Educação Abrangente

Uma modalidade de violação dos direitos das meninas que se difundiu amplamente na internet nos últimos anos é o deepfake. Essa tecnologia utiliza inteligência artificial generativa para criar montagens que inserem o rosto de uma garota no corpo de outra pessoa, frequentemente em contextos sexuais ou atos sexuais, sem consentimento. Por vezes, essas imagens são totalmente sintéticas, sem o uso de crianças ou adolescentes reais.

Recentemente, em 6 de novembro, a SaferNet Brasil divulgou um balanço sobre deepfakes sexuais. O estudo, financiado pelo fundo SafeOnline do Unicef, mapeou 16 casos encontrados em escolas de dez dos 27 estados brasileiros, após analisar centenas de notícias de 2023 até o presente. A organização identificou 72 vítimas e 57 agressores, todos menores de 18 anos. Além disso, os estados com maior número de ocorrências foram Alagoas, Bahia, Mato Grosso, Minas Gerais, Pará, Paraíba, Pernambuco, São Paulo, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul, com a maioria dos crimes ocorrendo em instituições de ensino particulares.

A SaferNet alerta que o número real de casos pode ser bem maior, pois a organização confirmou de forma independente mais três casos não noticiados pela imprensa, envolvendo pelo menos dez vítimas adicionais e um agressor. Ademais, a falta de monitoramento oficial por parte das autoridades brasileiras sobre a incidência e o avanço das investigações desses crimes dificulta a compreensão da verdadeira dimensão do problema. Diante desse desafio, a SaferNet disponibiliza materiais educativos para educadores e equipes pedagógicas e mantém um canal para denúncias, buscando combater a desinformação e proteger as crianças e adolescentes no ambiente online e offline.