O ministro da Advocacia-Geral da União (AGU), Jorge Messias, fez um alerta contundente nesta segunda-feira (6), durante uma audiência pública no Supremo Tribunal Federal (STF). Ele enfatizou que a crescente “pejotização” das relações de trabalho, caracterizada pela contratação de indivíduos como Pessoas Jurídicas (PJs), representa uma grave ameaça ao pacto social estabelecido na Constituição de 1988 e, além disso, compromete a dignidade humana.
A Pejotização e o Pacto Social: O Alerta da AGU
Para Messias, a discussão no STF sobre a legalidade da contratação via PJ transcende a esfera jurídica, alcançando um princípio civilizatório fundamental. Ele argumentou que essa prática desvaloriza o trabalho, fragiliza a justiça social e, por conseguinte, desequilibra a relação essencial entre capital e mão de obra. De acordo com o ministro, a “pejotização” atua silenciosamente, corroendo as estruturas que garantem a proteção social e enfraquecendo os alicerces do pacto constitucional que assegura o trabalho digno e a seguridade social no Brasil.
Historicamente, a contratação sob o regime da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) oferece uma série de garantias aos trabalhadores. Entretanto, a “pejotização” surge como uma alternativa que, ao substituir o contrato celetista, permite às empresas reduzir significativamente suas obrigações trabalhistas. Consequentemente, as companhias deixam de contribuir com a previdência e o Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS), por exemplo, gerando perdas bilionárias para o Instituto Nacional do Seguro Social (INSS). Diante desse cenário, a Justiça do Trabalho frequentemente interpreta a prática da “pejotização” como uma forma de fraude.
O Debate no Supremo Tribunal Federal
A relevância do tema motivou a convocação de uma audiência pública pelo ministro Gilmar Mendes, relator da ação que, anteriormente, suspendeu todos os processos judiciais relacionados a supostas fraudes contratuais de trabalhadores via PJs. Assim, o evento desta segunda-feira reuniu um amplo espectro de vozes, incluindo 78 representantes do governo, da sociedade civil, do setor empresarial e de sindicatos, todos convidados a contribuir com suas perspectivas.
Em sua fala, Gilmar Mendes ponderou que a Constituição Federal deve servir como baliza para encontrar um equilíbrio entre o estímulo ao empreendedorismo e a preservação da dignidade da pessoa humana, especialmente em face das transformações contínuas no mercado de trabalho. O ministro do STF ressaltou, portanto, que é através do diálogo construtivo que se devem buscar soluções que harmonizem a proteção social com a liberdade econômica, sempre tendo como meta primordial a garantia da dignidade humana. Ele destacou que o Supremo Tribunal Federal tem sido repetidamente acionado para abordar questões complexas como essa, esforçando-se para interpretar a Constituição à luz das novas realidades.
Distinguindo Empreendedorismo de Informalidade Disfarçada
Jorge Messias, o advogado-geral da União, fez questão de diferenciar as contratações legítimas de PJ daquelas que mascaram uma precarização. Ele explicou que a relação entre pessoas jurídicas é válida em contextos como a consultoria independente, onde há prestação de serviços especializados com autonomia e sem subordinação jurídica, ou em cadeias produtivas complexas que demonstrem efetiva independência técnica e econômica entre as partes envolvidas.
Por outro lado, o ministro da AGU alertou que é crucial distinguir essas situações do que ele denominou “informalidade disfarçada”. Messias afirmou categoricamente que a pejotização não representa o empreendedorismo autêntico, que emerge da autonomia e da livre iniciativa. Além disso, não se trata de uma liberdade de contratar entre partes iguais, tampouco de uma modernização produtiva que gera eficiência e inovação.
O que inicialmente pode parecer um arranjo moderno de contratação, segundo Messias, é, na realidade, um processo que enfraquece o sistema de proteção social. Consequentemente, ele empurra o trabalhador vulnerável para uma condição de informalidade, embora disfarçada de formalidade. Dados apresentados pelo AGU reforçam essa visão: entre 2002 e 2024, mais da metade (56%) dos trabalhadores demitidos que se “pejotizaram” estavam na faixa salarial de até R$ 2 mil, e outros 36,9% recebiam até R$ 6 mil. Essa transição, pontuou Messias, é predominantemente uma imposição do mercado, e não uma escolha genuína do trabalhador. Ele concluiu que essa estatística evidencia que a pejotização não é uma opção de elites profissionais, mas sim uma imposição silenciosa sobre a base da pirâmide social.
Corroborando essa perspectiva, Luiz Augusto Santos Lima, vice-subprocurador-Geral da República, exemplificou a situação de jovens médicos recém-formados. Ele descreveu como esses profissionais são frequentemente forçados a abrir empresas para serem contratados via PJ. Eles se veem, assim, submetidos a jornadas de trabalho extenuantes e a um regime rigoroso que não se alinha com a legislação trabalhista atual. Há, portanto, uma clara subordinação e não eventualidade. Apesar de receberem pagamentos que podem gerar a falsa impressão de altos ganhos, muitos acabam ficando meses sem receber após curtos períodos de trabalho.
A Visão do Setor Empresarial
Em contrapartida aos argumentos levantados, Flávio Unes, representando a Confederação Nacional dos Transportes (CNT), uma entidade patronal, apresentou uma visão distinta. Ele defendeu que a realidade da força de trabalho atual difere significativamente daquela da década de 1940, e nem todos os indivíduos almejam o regime da CLT.
Unes argumentou que uma parcela considerável dos trabalhadores possui condições e desejo de assumir riscos. Desse modo, é essencial avaliar a “hipossuficiência” do trabalhador; ou seja, se ele dispõe de poucos recursos financeiros, o que o impediria de negociar e buscar uma flexibilidade de escolha que a CLT, talvez, não contemple em todas as formas de trabalho. Como exemplo, citou motoristas autônomos de caminhão, que, segundo ele, frequentemente recebem mais que os empregados diretos e são proprietários de seus veículos. Para Unes, as relações entre PJs deveriam ser reguladas pela Justiça Comum, e não pela Trabalhista.
O representante da CNT adicionou que, caso a pejotização seja reconhecida como lícita, isso não resultaria em uma transferência automática e indiscriminada de todos os trabalhadores para o regime de PJ. Afinal, muitos empregadores ainda optam e necessitam da contratação via CLT. Por exemplo, em setores como a indústria, a necessidade de turnos rigorosos, controle e uma hierarquia clássica muitas vezes exige a estrutura de um contrato celetista.