A Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO) lançou uma nova Estratégia Global 2024–2033 para a Prevenção e o Controle da Influenza Aviária de Alta Patogenicidade (IAAP), conhecida como gripe aviária. O lançamento, realizado em Foz do Iguaçu, Paraná, ocorre em um momento de preocupante aumento dos surtos da doença desde 2020, o que intensifica o alerta global sobre o risco de uma possível pandemia.
O Cenário Global da Gripe Aviária e Seus Impactos
Desde o ano de 2020, o mundo tem testemunhado um crescimento alarmante nos registros de gripe aviária, que já somam quase 17 mil surtos. Consequentemente, milhões de animais foram vitimados pela doença, gerando um impacto devastador na produção animal global. Na América Latina, por exemplo, os surtos tornaram-se mais frequentes a partir de 2022, resultando em aproximadamente 2,5 mil ocorrências na região.
A influenza aviária é notoriamente infecciosa e letal entre as aves. Por isso, seu controle efetivo exige medidas sanitárias rigorosas, incluindo o abate de todos os animais sob suspeita de infecção, o que, além disso, acarreta custos elevados para a indústria pecuária. Entretanto, a preocupação se estende para além das aves, visto que a doença também possui a capacidade de contaminar outras espécies.
Embora os casos em seres humanos sejam raros, eles frequentemente apresentam alta taxa de mortalidade. Especialistas alertam que o vírus pode sofrer mutações que o tornem transmissível entre humanos, uma eventualidade que poderia desencadear uma pandemia, com graves consequências para a saúde pública mundial. Portanto, a vigilância e a prevenção são cruciais.
Estratégia Global da FAO: Pilares para o Enfrentamento
Andrés González, oficial regional de Saúde e Produção Animal para América Latina e Caribe da FAO, em entrevista à Agência Brasil, detalhou os principais pontos da recém-lançada estratégia global. Ele explicou que a iniciativa busca primordialmente estabelecer diretrizes claras para o combate e, sobretudo, para a prevenção da doença de forma colaborativa, adotando o conceito de “Uma Só Saúde”.
Foco na Prevenção e Colaboração
O principal objetivo do evento em Foz do Iguaçu é, de fato, socializar, aprimorar e tornar operacional essa estratégia. Escolheu-se o Paraná devido à sua importância como zona altamente produtiva. A estratégia, ademais, apresenta linhas técnicas concretas desenvolvidas para monitorar riscos e orientar ações baseadas em avaliações precisas. Subsequentemente, o segundo pilar essencial é aprimorar o diagnóstico laboratorial, garantindo que os laboratórios estejam plenamente preparados para atuar quando necessário.
Além disso, um ponto fundamental é a promoção da colaboração intersetorial. Isso significa que não apenas os serviços veterinários devem atuar, mas também os órgãos de meio ambiente e de saúde humana devem integrar esforços. Da mesma forma, haverá um forte destaque para a biossegurança, que engloba as boas práticas de produção destinadas a prevenir a entrada do vírus nas unidades de produção e o contato com os animais, minimizando assim a propagação.
Outro tema de grande relevância a ser discutido é o aprimoramento das estratégias de vacinação. É importante ressaltar que a FAO, em conjunto com a Organização Mundial da Saúde, não impõe a vacinação, mas fornece diretrizes abrangentes sobre como proceder e como maximizar seus benefícios. Subsequentemente, a necessidade de capacitação contínua é enfatizada, tanto para o pessoal técnico dos serviços sanitários quanto para os produtores e a comunidade em geral. Por fim, a estratégia busca favorecer a articulação entre os setores público e privado, bem como a academia, para gerar conhecimento útil que beneficie toda a cadeia de valor, desde a produção e transformação até a indústria alimentícia e, crucialmente, os consumidores.
Desafios Regionais e o Protagonismo do Brasil
González abordou a questão das desigualdades entre países e como elas impactam a capacidade de vigilância e resposta à gripe aviária. Ele destacou que países exportadores, por exemplo, enfrentam maiores exigências de mercado para aprimorar suas capacidades. Na América Latina e Caribe, existe uma vasta diversidade de países e, consequentemente, de capacidades, o que fomenta o trabalho regional, dado que uma doença viral como a influenza aviária pode facilmente transpor fronteiras através de aves silvestres.
Nesse sentido, existem redes regionais que trabalham de forma integrada e colaborativa, especialmente com os países de menor capacidade. Um exemplo notável é a Rede Sul-Americana de Luta contra a Influenza Aviária (Resudia), que reúne países da América do Sul para ações conjuntas em alerta precoce e diagnóstico laboratorial. O Laboratório Federal de Diagnóstico Agropecuário, em Campinas (SP), atua como centro de referência, auxiliando países que não possuem recursos para reagentes ou protocolos padronizados, facilitando assim o acesso a expertises de nações como Brasil, Uruguai e Chile, que contam com sistemas de vigilância mais avançados. Dessa forma, todos se beneficiam no que diz respeito à capacitação e à resposta imediata a emergências.
O Brasil, portanto, assume um papel de inegável protagonismo na região. Desde 2021, o país colabora com o Comitê Veterinário Permanente do Cone Sul, que une os serviços veterinários de seis nações sul-americanas para a gestão colaborativa da saúde animal. Atualmente, o Brasil ocupa a presidência pro tempore do comitê e lidera os esforços de preparação para emergências sanitárias, com foco especial na influenza aviária. A colaboração brasileira se manifesta não apenas em apoio técnico (laboratorial, vigilância, reagentes), mas também em coordenação e liderança regional. Um exemplo claro disso foi a imediata organização de uma reunião virtual com países vizinhos quando o primeiro caso em granjas comerciais surgiu em Montenegro (RS), garantindo transparência e informação quase em tempo real para a região.
A Complexa Decisão da Vacinação
Sobre a vacinação, González explicou que o Brasil adota uma estratégia de erradicação imediata na detecção do vírus, em vez de presumir sua circulação contínua. De fato, o país conseguiu recuperar seu status de livre da doença em tempo recorde, menos de 28 dias após o controle em granjas comerciais. Por conseguinte, a vacinação deve ser analisada com um senso crítico apurado, visto que é uma ferramenta que, embora útil, exige capacidades elevadas dos serviços veterinários.
Para que a vacinação seja eficaz, é imprescindível contar com um sistema de vigilância robusto que identifique casos precocemente. Além disso, é necessário um sistema de diagnóstico sofisticado e custoso, capaz de diferenciar aves vacinadas de não vacinadas, bem como o vírus circulante do vírus da vacina. A decisão de vacinar também deve considerar a diversidade das populações de aves domésticas, adaptando a estratégia a cada tipo de produção. Portanto, a vacinação deve ser uma medida a ser considerada somente após esgotadas outras vias de proteção.
No caso do Brasil, a vacinação não foi necessária, pois o problema foi controlado rapidamente. Blocos como a União Europeia e os Estados Unidos ainda não vacinam e continuam avaliando a necessidade e os protocolos. Contudo, existem diretrizes globais da Organização Mundial de Saúde Animal sobre como elaborar um plano de vacinação eficaz. O papel da FAO é garantir que esses padrões cheguem aos países, mas não existe uma “receita única”; a decisão deve ser um consenso entre os setores público e privado, considerando as especificidades locais.
O Debate Sobre o Endemismo da Gripe Aviária
González abordou a questão de se a influenza aviária já pode ser considerada uma doença endêmica. Ele relembrou a primeira disseminação massiva na América Latina e Caribe em outubro de 2022, quando o vírus atingiu mais de 16 países simultaneamente, uma situação inédita que indica uma forte presença do vírus. A identificação do vírus em aves silvestres, inclusive, demonstra a sensibilidade dos sistemas de vigilância, como o do Brasil, que atua ativamente na detecção da doença.
Houve, de fato, um aumento na frequência de casos de influenza aviária observados em aves silvestres, domésticas, mamíferos e, em alguns poucos registros, humanos na região. No entanto, ainda não é possível afirmar que a doença é endêmica, ou seja, que “chegou para ficar”. González enfatizou que o conceito de endemismo exige a comprovação de dois fatores cruciais: a magnitude dos casos e a permanência contínua no território. Até o momento, os dados são insuficientes para essa afirmação, mesmo no Brasil. O que se observa são incursões esporádicas do vírus, principalmente em aves silvestres, e não um endemismo consolidado.
Prevenção, Transmissão Zoonótica e “Uma Só Saúde”
A respeito dos casos em humanos, González esclareceu que a transmissão do vírus para humanos não ocorre pelo consumo de carne de frango ou ovos devidamente preparados e cozidos, o que é uma mensagem crucial para a segurança alimentar global e para evitar impactos em um mercado tão vital. Os casos de infecção humana registrados até agora, alguns fatais, resultaram de contato direto e próximo com animais infectados.
Felizmente, a capacidade de o vírus infectar humanos ainda não é tão efetiva, embora ele tenha demonstrado grande adaptabilidade a mamíferos, como leões-marinhos, focas e, mais recentemente, vacas leiteiras nos Estados Unidos. Consequentemente, o vírus pode gerar recombinações que afetariam mamíferos, incluindo os humanos. Portanto, o estudo genômico e molecular desses vírus é vital para avaliar seu estágio e atuar preventivamente, caso sua patogenicidade para mamíferos aumente.
González reforçou o enfoque de “Uma Só Saúde”, que destaca a interdependência entre saúde veterinária, saúde pública humana e saúde ambiental. Essas áreas devem trabalhar em conjunto, não de forma isolada, para lidar eficazmente com o potencial zoonótico do vírus. As autoridades de cada setor precisam fomentar o trabalho integrado, a comunicação e a produção de evidências compartilhadas. Por fim, ele sublinhou a importância da biossegurança. Produtores, trabalhadores e qualquer pessoa em contato com aves devem adotar medidas de biossegurança e boas práticas para mitigar o risco de transmissão por meio de barreiras físicas e não físicas entre animais e pessoas.
Impactos Ampliados e Vigilância Contínua
Em relação à infecção de outros mamíferos, como suínos e bovinos, González alertou para a necessidade de vigilância constante sobre como o vírus se recombina para infectar mamíferos de maneira mais rápida, embora não haja um risco particular envolvendo a produção de suínos neste momento. A vigilância é a chave; o Ministério da Agricultura e Pecuária do Brasil, por exemplo, já acompanha caso a caso, confirmando rapidamente e realizando sequenciamento molecular.
Atualmente, diferentemente de 30 anos atrás, a tecnologia permite conhecer o genoma do vírus, e laboratórios como o de Campinas realizam essa análise diariamente, identificando mutações ou novos vírus. Isso possibilita uma ação rápida para evitar a disseminação em aves e mamíferos. A FAO também monitora o impacto na biodiversidade, pois a doença pode afetar populações de mamíferos silvestres, com consequências para o turismo e a fauna nativa de países. Assim, a visão holística do problema é crucial, considerando não apenas a saúde, mas também a alimentação, a segurança alimentar, a biodiversidade e a fauna silvestre, reforçando mais uma vez a abordagem de “Uma Só Saúde”.