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Crise climática põe cerâmica Waurá, elo cultural, sob ameaça

No Parque do Xingu, a cerâmica Waurá, tradição milenar, está sob ameaça climática. A escassez de cauxi, insumo vital, impede a produção e põe em risco a cultura e a renda das mulheres indígenas.
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Foto: Claudio Tavares/ISA/Proibida reprodução

No coração do Parque Indígena do Xingu, uma tradição milenar do povo Waurá, a arte da cerâmica, enfrenta uma grave ameaça decorrente da crise climática. A escassez alarmante de cauxi, um insumo natural vital, impede diretamente a produção dessas peças artesanais. Consequentemente, não apenas a riqueza cultural e a identidade Waurá estão em risco, mas também a fundamental autonomia econômica das mulheres que dedicam suas vidas a este ofício ancestral.

A Tradição Milenar da Cerâmica Waurá

A história da cerâmica Waurá, também conhecida como Wauja, remonta a tempos imemoriais, conforme narrado em suas ricas tradições orais. Diz a lenda que uma gigantesca cobra-canoa, nomeada Kamalu-hái, emergiu trazendo consigo artefatos cerâmicos em seu dorso. Foi através dessa entidade mística que o povo Waurá aprendeu a intrincada arte da cerâmica, estabelecendo assim um elo profundo e duradouro com essa prática ancestral.

Antes de se despedir, Kamalu-hái, de acordo com a narrativa, deixou para os Waurá montes de argila nas margens dos rios, garantindo os recursos necessários para a criação contínua dessas peças. Desde então, a cerâmica Waurá se tornou um elemento central da identidade e do patrimônio cultural desse povo. Transmitidas de geração em geração, essas peças são elaboradas artesanalmente, variando desde pequenos recipientes até grandes panelas. De fato, elas servem para o preparo e armazenamento de alimentos, mas também desempenham papéis cruciais em rituais e como adornos decorativos, demonstrando sua multifuncionalidade.

O processo de confecção é meticuloso e exigente. Após serem modeladas à mão, as peças secam sob o sol e, posteriormente, passam por dezenas de raspagens até atingir a espessura ideal. Em seguida, são lixadas e polidas cuidadosamente antes de serem queimadas ao ar livre. Somente depois dessas etapas, adquirem a característica mais distintiva: a pintura com grafismos complexos, utilizando pigmentos naturais que ressaltam sua beleza e significado cultural.

Para criar essa cerâmica, os Waurá, que residem no Parque Nacional do Xingu, em Mato Grosso, coletam o barro diretamente do leito do rio. Posteriormente, este barro é misturado com cauxi, uma espécie de esponja de água doce ou coral. Este material, encontrado no fundo dos rios, formando-se em troncos e raízes da vegetação, é indispensável. Afinal, o cauxi confere liga ao barro e, crucialmente, impede que as peças rachem durante o processo de secagem e queima.

Yakuwipu Waurá, uma proeminente liderança indígena, ceramista e professora da aldeia Piyulewene, no Parque Nacional do Xingu, explicou detalhadamente o processo. “Primeiro a gente pega o barro no rio ou perto do rio. Os homens é que mergulham para pegar o barro”, descreveu. Ela acrescentou, “A gente pega o barro e também o cauxi. O barro, sozinho, não se forma. Se a gente só usar o barro, vai rachar tudo. E, para não rachar, a gente usa o cauxi, que fica no pântano do rio ou na beira do rio. O cauxi se reproduz enquanto o rio fica cheio. Ele fica lá por uns quatro ou cinco meses, brotando. Ele vai crescendo e, depois, morre. Morre sozinho”.

Crise Climática Ameaça Insumo Essencial

Contudo, o conhecimento milenar da fabricação da cerâmica Waurá, preservado e transmitido principalmente pelas mulheres por mais de mil anos, encontra-se hoje sob grave risco. As recentes secas prolongadas, juntamente com cheias cada vez mais curtas e irregulares, têm provocado uma redução drástica na disponibilidade do cauxi. Este elemento, conforme mencionado, é absolutamente essencial para a produção dessas cerâmicas tradicionais.

Além disso, o processo artesanal completo, que inclui a coleta do barro e a queima em madeira específica, como o jatobá, além da pintura com grafismos tradicionais, também é severamente impactado pelas alterações ambientais. Sem esses insumos cruciais, não apenas a produção é comprometida, mas também a autonomia econômica das mulheres Waurá e a vital transmissão cultural para as futuras gerações.

Yakuwipu Waurá expressou sua profunda preocupação em uma entrevista, destacando: “Desde 2020, a gente vem percebendo que a mudança climática está afetando [a produção de cauxi]”. Ela explicou que, como o rio não permanece cheio pelo período de cinco meses necessário, mas apenas por cerca de três meses antes de baixar, o cauxi não consegue se reproduzir suficientemente. Consequentemente, a falta de cauxi levou à interrupção da produção de várias “panelinhas” artesanais. Posteriormente, foi preciso buscar o insumo em outros locais, o que elevou consideravelmente os custos de produção e a dificuldade do trabalho.

Ela complementou a situação preocupante: “No lugar em que a gente costumava sempre pegar [cauxi], agora é que ele começou a se recuperar. Mas os cauxis ali são muito pequenos e insuficientes para cortar, queimar e fazer a mistura [com o barro]”. Claramente, a recuperação ainda é insuficiente para atender às necessidades da comunidade.

Um Grito de Alerta em São Paulo

Em um esforço para conscientizar sobre a gravidade da situação, ceramistas do povo Waurá estiveram recentemente em São Paulo. Durante uma série de encontros, oficinas e rodas de conversa, elas aproveitaram a oportunidade para fazer um veemente alerta sobre os impactos das mudanças climáticas. De fato, esses fenômenos não apenas intensificam eventos extremos como enchentes e secas, mas também ameaçam diretamente a identidade e as tradições de diversos povos indígenas no Brasil.

Yakuwipu Waurá manifestou a dimensão da preocupação: “Isso tudo é muito preocupante. A gente se preocupa muito com o avanço do desmatamento em volta do Xingu. Nunca imaginamos que isso afetaria a produção de panelinha [as cerâmicas Waurá]”. Ela ponderou que a comunidade sempre temeu a perda do conhecimento com o tempo, mas jamais pensou que as mudanças climáticas seriam um fator tão devastador. “O povo Waurá vive do que a natureza oferece. Só que a gente está pagando o preço e as consequências do mal que os outros fazem à natureza”, lamentou, reforçando ainda mais, “Infelizmente, vocês não cuidam [do meio ambiente]. Vocês só abusam da natureza”.

A carência de cauxi afeta diretamente a produção das cerâmicas e, por conseguinte, impacta a identidade cultural e a renda dessa população indígena, que comercializa suas obras. “Estamos ameaçados, tanto culturalmente quanto também na renda”, salientou a liderança. Ela explicou que todas as peças produzidas pelos Waurá estão intrinsecamente ligadas aos elementos naturais ao seu redor, como animais, pássaros e peixes. “Além disso, [as cerâmicas] são pedaços de nossas histórias, são memórias. Através de cada peça, a gente tem contado do [nosso] passado e da [nossa] cultura também. Cada pintura que fazemos, por meio dessas linhas, nos mantêm conectados ao passado, ao presente e ao futuro”, concluiu, evidenciando o profundo significado cultural de cada artefato.

Adicionalmente, Yakuwipu revelou em outra entrevista à Agência Brasil, realizada no Espaço Floresta do Centro do Instituto Socioambiental, que as mudanças climáticas também têm dificultado a produção de alimentos essenciais. “Em 2023, não conseguimos plantar uma grande escala de mandioca. Eu replantei três vezes, e a mandioca cresceu toda pequena. E a gente não conseguiu plantar milho, perdemos todas as sementes. Também não conseguimos plantar bananas”, exemplificou, ressaltando a abrangência da crise.

A Voz Indígena na COP 30

Para a líder indígena, todo esse cenário de adversidades sublinha a urgência dos debates na Conferência das Nações Unidas sobre Mudança do Clima (COP 30), agendada para Belém, entre 10 e 21 de novembro. É imperativo, segundo ela, que as autoridades escutem atentamente as vozes indígenas e que os fazendeiros, por sua vez, “deixem de desmatar as florestas”.

Yakuwipu enfatizou a necessidade de consulta: “Os xinguanos [habitantes do Xingu] precisam ser consultados sobre todas as obras que vão ser construídas em volta do Xingu, porque a gente já tem uma experiência em relação à [usina] PCH Paranatinga II, que foi construída sem estudo nenhum”. Ela lembrou que, embora as autoridades tenham prometido que a usina não afetaria a vida local, “passados dez anos, ela que foi responsável por secar o Rio Xingu”. Portanto, para evitar futuros desastres ambientais, “é preciso que as autoridades nos respeitem, porque o rio e a floresta respiram como nós”, pontuou com veemência.

Karina Araújo, analista de pesquisa social do Programa Xingu do Instituto Socioambiental, corroborou essa visão, afirmando que é fundamental que os povos indígenas sejam ouvidos tanto em relação aos projetos de infraestrutura do país quanto às ações que visam impedir o desmatamento e as queimadas na região. “Acho que essa consulta livre, prévia e informada é um tipo de solução”, disse Karina. Ela argumentou que “se você vai fazer um empreendimento sem ouvir os povos indígenas, você vai afetar não só os povos indígenas, você vai afetará todo o entorno e as gerações futuras. Quando a gente ouve os povos indígenas, eles estão fazendo a mitigação e a adaptação”. Além disso, ela apontou que “no entorno do Parque Indígena do Xingu, temos muita produção de soja. É preciso que as autoridades dos países que compram essa soja vejam como são também responsáveis por afetar esse equilíbrio ambiental”.

Karina expressou grande esperança na participação dos povos indígenas na COP 30. “Além do evento acontecer no Brasil, ele acontece aqui nesse momento político em que temos o Ministério dos Povos Indígenas”, observou. Ela adicionou que “temos organizações indígenas muito fortalecidas por esse ministério e por toda uma mudança, vamos dizer assim, de financiadores. Atualmente, temos muito mais financiadores ou empresas financiando diretamente as associações e organizações indígenas. Isso aumenta o protagonismo dos indígenas”. Em suma, ela espera “que tanto o governo brasileiro como os governos de outros países se coloquem em escuta [aos apelos indígenas]”.

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