O Supremo Tribunal Federal (STF) deu início nesta terça-feira (2) ao aguardado julgamento sobre a alegada tentativa de golpe de Estado, que visava manter o ex-presidente Jair Bolsonaro no poder após sua derrota nas eleições de 2022. A sessão teve como ponto de partida a leitura do minucioso relatório elaborado pelo ministro Alexandre de Moraes, relator do caso, que detalhou as acusações formuladas pela Procuradoria-Geral da República (PGR) e as linhas de defesa dos oito réus envolvidos na trama.
O Início do Processo Judicial e o Roteiro do Julgamento
A leitura do relatório final da ação penal pelo ministro Moraes marcou o primeiro passo de um processo que, conforme o calendário do STF, deverá se estender até o dia 12 de setembro. Neste período, espera-se a prolação da sentença definitiva, que decidirá o destino de Bolsonaro e de sete de seus ex-assessores mais próximos, identificados como o “núcleo crucial” da suposta articulação golpista. Conforme o rito estabelecido, posteriormente à apresentação de Moraes, o ministro Cristiano Zanin, presidente da Primeira Turma do Supremo onde o julgamento ocorre presencialmente, concedeu a palavra ao procurador-geral da República, Paulo Gonet, autor da denúncia. Gonet terá até duas horas para expor a acusação. Em seguida, na parte da tarde, as defesas dos réus terão uma hora cada para apresentar seus argumentos.
Antes de mergulhar nos detalhes do caso, Alexandre de Moraes proferiu um discurso enfático, reafirmando a independência da Justiça brasileira e a soberania nacional. Ele também garantiu a imparcialidade da Suprema Corte frente a quaisquer pressões, sejam elas internas ou externas. Assim, o ministro procedeu a um resumo cronológico exaustivo de toda a tramitação da ação penal, desde a fase inicial de inquérito, passando pela aceitação da denúncia, até a instrução processual e o momento atual do julgamento. Adicionalmente, o relator sintetizou as diferentes versões e argumentações apresentadas tanto pela PGR quanto pelas equipes de defesa dos acusados.
A Narrativa da Acusação: O Plano Golpista Detalhado pela PGR
No que diz respeito à acusação, Moraes delineou os atos que o procurador-geral Gonet apontou como elementos constitutivos da tentativa de golpe. Segundo a narrativa da PGR, a execução do plano de ruptura institucional teria sido deflagrada em julho de 2021. Naquela ocasião, uma reunião ministerial teria ocorrido, durante a qual Bolsonaro supostamente conclamou seus auxiliares a descredibilizarem, sem evidências concretas, o sistema eletrônico de votação. Para a Procuradoria, esta estratégia foi crucial para insuflar uma base de apoiadores, gerando a “comoção social” necessária para justificar o golpe, caso houvesse uma derrota eleitoral.
Além disso, a PGR mencionou a ocorrência de reuniões no Palácio da Alvorada onde os réus teriam debatido e planejado minutas de decretos com o intuito de instituir um regime de exceção no país. A organização criminosa, conforme a denúncia, teria também cooptado instituições-chave, como a Polícia Rodoviária Federal (PRF) e a Agência Brasileira de Inteligência (Abin), utilizando-as como instrumentos para viabilizar o plano golpista. Um detalhado planejamento, intitulado “Punhal Verde e Amarelo”, que inclusive previa a “Operação Copa 2022” para 12 de dezembro de 2022, chegou a ser impresso nas dependências do Palácio do Planalto. Este plano incluía ações drásticas, como o sequestro ou até mesmo o assassinato de adversários políticos, entre eles o próprio ministro Alexandre de Moraes e o então presidente eleito, Luiz Inácio Lula da Silva, e seu vice, Geraldo Alckmin.
Entretanto, este plano só não foi adiante devido à não adesão dos comandantes das Forças Armadas da época. O general Freire Gomes, do Exército, e o brigadeiro do ar Baptista Júnior, da Aeronáutica, confirmaram em depoimento que participaram de uma reunião em 7 de dezembro, quando lhes foi apresentada uma minuta de decreto golpista, mas recusaram-se a participar. Consequentemente, a tentativa de golpe, segundo Gonet, culminou nos atos antidemocráticos de 8 de janeiro de 2023, quando apoiadores de Bolsonaro invadiram e depredaram as sedes dos Três Poderes. Para o PGR, o episódio não foi um evento espontâneo; na verdade, fazia parte integrante do planejamento golpista, e os manifestantes teriam recebido treinamento e orientação da organização criminosa.
Os Contrapontos da Defesa: Negativas e Críticas à Condução do Caso
Por outro lado, o ministro Moraes também expôs detalhadamente os argumentos das defesas, que buscam refutar a participação de cada cliente em qualquer trama golpista. Em linhas gerais, os advogados sustentam que nenhum dos réus tinha conhecimento de um plano dessa natureza, e que a PGR estaria, por motivos políticos, criminalizando atos rotineiros do governo, como reuniões e elaboração de documentos.
A equipe jurídica de Bolsonaro, por exemplo, contrapõe a narrativa da PGR, afirmando que o ex-presidente, na verdade, ordenou uma transição de governo, e não um golpe. Além disso, os advogados caracterizam a acusação de Gonet como um “golpe imaginário”, pois alegam a ausência de um ato executório concreto, como um documento de autoria conhecida, classificando todas as minutas apresentadas como prova como apócrifas. Adicionalmente, os advogados dos oito réus convergiram em suas críticas à delação premiada do tenente-coronel Mauro Cid, ex-ajudante de ordens de Bolsonaro, que firmou um acordo de colaboração com a Polícia Federal (PF). Para as defesas, Cid teria mentido, entrado em contradição e sido coagido a depor sob a ameaça de prisão de sua família.
Outro ponto crucial levantado pelas defesas é a alegada falta de provas que situem os réus diretamente na cena dos ataques de 8 de janeiro de 2023. Embora o PGR reconheça que nenhum deles estivesse fisicamente no local, ele argumenta que isso não os exime da responsabilidade pela depredação das sedes dos Três Poderes. As defesas, entretanto, argumentam que esta abordagem fere as leis penais, pois é imprescindível que a acusação aponte exatamente qual ato específico de cada réu se enquadra em cada crime imputado. Moraes, em sua exposição, também descreveu suas próprias decisões e as críticas das defesas à sua condução do caso. Os advogados, por exemplo, contestaram a celeridade da tramitação, alegando que recursos defensivos foram atropelados, sendo negados individualmente pelo ministro sem a devida apreciação colegiada pela Primeira Turma. Da mesma forma, reclamaram do tempo exíguo concedido para a análise de mais de 70 terabytes de documentos e informações anexadas ao processo pela acusação.
Os Acusados e as Implicações Jurídicas do Julgamento
O julgamento abrange uma série de acusações graves contra Jair Bolsonaro e sete ex-auxiliares, além da tentativa de golpe de Estado. A Procuradoria-Geral da República (PGR) os imputa pelos seguintes crimes:
- Liderar ou integrar organização criminosa armada;
- Atentar violentamente contra o Estado Democrático de Direito;
- Tentar um golpe de Estado;
- Praticar dano qualificado por violência e grave ameaça;
- Deteriorar patrimônio público tombado.
Contudo, há uma exceção notável: o ex-diretor da Abin, Alexandre Ramagem. Devido ao fato de cumprir mandato de deputado federal, Ramagem foi beneficiado com a suspensão de parte das acusações, respondendo somente pelos três primeiros crimes mencionados. Esta prerrogativa está prevista na Constituição Federal. Em caso de condenação, as penas podem ultrapassar os 40 anos de prisão, variando conforme o papel desempenhado por cada réu no complô golpista.
A análise do caso está sendo realizada na sala de audiências da Primeira Turma do Supremo, em Brasília, com transmissão ao vivo pela TV e Rádio Justiça, bem como pelo canal oficial do STF no YouTube. Os réus categorizados como o “núcleo crucial” da trama golpista, considerados os principais idealizadores, são:
- Jair Bolsonaro – ex-presidente da República;
- Alexandre Ramagem – ex-diretor da Agência Brasileira de Inteligência (Abin);
- Almir Garnier – ex-comandante da Marinha;
- Anderson Torres – ex-ministro da Justiça e ex-secretário de Segurança do Distrito Federal;
- Augusto Heleno – ex-ministro do Gabinete de Segurança Institucional (GSI);
- Paulo Sérgio Nogueira – ex-ministro da Defesa;
- Walter Braga Netto – ex-ministro de Bolsonaro e candidato a vice na chapa de 2022;
- Mauro Cid – ex-ajudante de ordens de Bolsonaro.