Pernambuco avança em uma nova abordagem para o controle da Doença de Chagas, implementando um protocolo inovador no Sertão do Pajeú, uma das regiões com maior prevalência da enfermidade. Esta iniciativa pioneira visa descentralizar o diagnóstico e o tratamento, aproximando-os dos pacientes em suas cidades de residência. Atualmente, a maior parte dos atendimentos ainda exige que os pacientes se desloquem para unidades especializadas, como a Casa de Chagas, localizada na capital, Recife, o que representa um grande obstáculo para o acesso à saúde.
O Desafio do Diagnóstico e o Impacto da Doença
Um dos maiores desafios no combate à Doença de Chagas reside na dificuldade de um diagnóstico precoce. A infecção, em muitos casos, não manifesta sintomas específicos logo após a contaminação, evoluindo silenciosamente para uma fase crônica. Esta progressão pode acarretar sérias complicações, sobretudo no coração, resultando, infelizmente, na morte de cerca de 4,5 mil brasileiros anualmente, conforme dados do Ministério da Saúde. Contudo, quando a doença é identificada em seus estágios iniciais, o tratamento medicamentoso pode evitar complicações graves e preservar a qualidade de vida do paciente.
A Organização Pan-Americana da Saúde (Opas) revela uma realidade alarmante: menos de 10% das pessoas com Doença de Chagas nas Américas são diagnosticadas, e, ainda mais preocupante, menos de 1% das diagnosticadas recebem o tratamento antiparasitário adequado. Em consequência, a maioria dos pacientes só descobre a condição em fases avançadas da enfermidade. Por essa razão, o projeto-piloto em Pernambuco foi estrategicamente batizado de “Quem tem Chagas, tem pressa”, enfatizando a urgência em reverter esse cenário.
A Força dos Testes Rápidos na Detecção Precoce
O projeto foi estruturado em fases distintas. Primeiramente, profissionais de saúde, estudantes da área e residentes das cidades de Triunfo e Serra Talhada, em Pernambuco, participaram de treinamentos abrangentes sobre a doença. Posteriormente, no final de julho, a segunda fase foi implementada, com a realização de testes rápidos em aproximadamente mil pessoas nos dois municípios. Os resultados sublinharam a gravidade da situação local: 9% dos participantes testaram positivo para a doença, um índice notavelmente superior à média nacional, que oscila entre 2% e 5%, conforme observação do médico Wilson Oliveira, da Casa de Chagas e responsável pela iniciativa.
Ana Márcia Drechsler, gerente de Vigilância das Arboviroses e Zoonoses da Secretaria de Saúde de Pernambuco, destaca o teste rápido como um dos pilares fundamentais do projeto. Anteriormente, todos os casos suspeitos necessitavam de um exame sorológico em um centro de referência, que, além de estar a oito horas de distância de carro, levava até 45 dias para fornecer o resultado. Em contraste, o teste rápido oferece um resultado em questão de minutos. Todavia, por segurança, os resultados positivos ainda são encaminhados para a sorologia, garantindo a confirmação definitiva da infecção.
Ana Márcia Drechsler, gerente de Vigilância das Arboviroses e Zoonoses da Secretaria de Saúde de Pernambuco, ressalta que o objetivo principal é descentralizar o diagnóstico para identificar a doença mais cedo, diminuindo assim o número de casos crônicos. Ela explica que o projeto visa validar o teste rápido, o que não só economizará tempo, mas também recursos, pois apenas os resultados positivos no teste rápido exigirão confirmação por sorologia. É relevante mencionar que os testes empregados no projeto são produzidos pelo Instituto de Tecnologia em Imunobiológicos da Fundação Oswaldo Cruz (Biomanguinhos/Fiocruz).
Tratamento Acessível e a Visão da Atenção Primária
A fase de tratamento dos pacientes com infecção confirmada terá início em setembro, e, em consonância com a proposta de descentralização, o projeto assegura que eles possam realizar o tratamento próximo de suas residências. O médico Wilson Oliveira enfatiza a importância dessa proximidade para a adesão e conclusão do tratamento, que exige a administração de medicamentos por 60 dias. O médico Wilson Oliveira, responsável pela iniciativa, observa que, atualmente, muitos pacientes precisam viajar longas distâncias, por vezes até 800 quilômetros, para receber atendimento nos centros de referência. No entanto, ele argumenta que uma parcela significativa de pessoas com Chagas – cerca de 70% – não desenvolve complicações cardíacas graves e, por conseguinte, poderia ser eficazmente tratada na atenção primária de suas próprias comunidades, que possui alta capacidade de resolução.
Chagas: Uma Doença Negligenciada e suas Raízes Sociais
Causada pelo protozoário Trypanosoma cruzi, a Doença de Chagas é transmitida principalmente pela picada do inseto barbeiro infectado. No entanto, outras vias de infecção incluem a ingestão de alimentos contaminados, transfusões sanguíneas e a transmissão vertical, de mãe para filho, durante a gestação ou o parto. Wilson Oliveira, por sua vez, caracteriza a doença de Chagas como uma condição “negligenciada” devido à sua forte ligação com a pobreza: ela afeta predominantemente as populações mais vulneráveis, é agravada pelas condições de miséria e, por sua vez, perpetua esse ciclo de empobrecimento. Consequentemente, a enfermidade é frequentemente subdiagnosticada, e pouquíssimos pacientes recebem tratamento adequado. De fato, a maioria só toma conhecimento da sua condição em estágios avançados da vida, quando já se encontra severamente debilitada por complicações cardíacas ou digestivas.
Historicamente, a prevalência da doença está profundamente associada a regiões rurais e comunidades com moradias precárias. O inseto barbeiro, transmissor do protozoário, prolifera em ambientes de mata, lavouras e áreas de criação de animais. Dentro das residências, ele costuma se alojar em frestas e buracos nas paredes. O agricultor Roberto Barbosa dos Santos, de Triunfo, compartilha uma experiência que reflete essa realidade em sua infância. Ele narra que, em sua casa, não havia colchões; sua mãe improvisava camas com sacos cheios de palha de banana seca, um ambiente propício para o barbeiro. Além disso, as paredes sem reboco ofereciam inúmeras frestas nos tijolos e pedras, onde os insetos se escondiam.
Lamentavelmente, Roberto Barbosa dos Santos integra as estatísticas de diagnóstico tardio da doença. Ele suspeita ter herdado a enfermidade de sua mãe, que faleceu de infarto, e aponta que oito de seus irmãos também são portadores da Chagas. No entanto, seu próprio diagnóstico só veio na idade adulta, privando-o do acesso ao tratamento precoce. Roberto relata que seu diagnóstico ocorreu em 2006, durante um período em que trabalhava no corte de cana em São Paulo, e um exame de Chagas foi solicitado. Ele descreve a progressão dos sintomas: a partir de 2015, notou falta de ar e cansaço persistente, culminando, cerca de dois anos depois, em uma fraqueza intensa e até um princípio de infarto. Atualmente, Roberto utiliza um marcapasso e convive com outras complicações da doença. Contudo, ele está ativamente engajado para evitar que novos pacientes percorram o mesmo caminho, atuando como presidente da recém-fundada filial de Triunfo da Associação dos Pacientes Portadores de Doença de Chagas, Insuficiência Cardíaca e Miocardiopatia de Pernambuco.
Impacto e Esperança para o Futuro
Michelle Ehlke, diretora de Saúde Global e Responsabilidade Corporativa da Novartis Brasil, expressa a convicção de que o projeto em Pernambuco tem o potencial de se tornar um modelo exemplar para políticas públicas em todo o país. A Novartis, como parceira institucional da iniciativa, já planeja a expansão do programa. Michelle Ehlke, diretora de Saúde Global e Responsabilidade Corporativa da Novartis Brasil, destaca a visão de fortalecer a atenção primária como um ponto de acesso qualificado, especialmente em regiões com acesso restrito. Ela enfatiza que a experiência no Sertão do Pajeú possui um grande potencial para se transformar em um modelo de referência nacional, passível de replicação em outras áreas endêmicas do país. O objetivo é promover equidade, prevenção e sustentabilidade no cuidado de saúde. Caso a eficácia do projeto seja comprovada, a Novartis planeja expandir a iniciativa, buscando novas colaborações para levar o programa a outras comunidades severamente afetadas pela doença.