As duas maiores cidades do Brasil, São Paulo e Rio de Janeiro, adotam caminhos distintos na abordagem dos serviços de transporte por aplicativo utilizando motocicletas. Enquanto a capital paulista optou pela proibição do mototáxi, citando os riscos inerentes à vulnerabilidade das motos, a metrópole carioca busca regulamentar o serviço, visando padronizar as regras das plataformas e combater infrações de trânsito dos condutores. Essa dualidade expõe as diferentes prioridades e desafios enfrentados pelas grandes áreas urbanas brasileiras ao lidar com a mobilidade e a segurança no transporte.
O Dilema de São Paulo: Proibição e Disputa Judicial
Desde o início de 2025, a Prefeitura de São Paulo e as empresas de aplicativos travam uma intensa batalha judicial sobre a legalidade do mototáxi na cidade. As plataformas argumentam que uma lei federal existente autoriza a prestação do serviço em todo o território nacional. Por outro lado, o município editou um decreto proibindo os mototáxis, justificando a medida com base nos elevados perigos para os usuários. De fato, dados da Associação Brasileira de Medicina do Tráfego (Abramet) indicam que acidentes envolvendo motocicletas possuem uma probabilidade 17 vezes maior de serem fatais quando comparados a sinistros com automóveis.
Em janeiro, o prefeito de São Paulo, Ricardo Nunes, proferiu declarações contundentes, classificando a plataforma 99 como “assassina” e acusando-a de tentar instaurar uma “carnificina” na cidade. Naquele momento, a 99 respondeu, afirmando a inconstitucionalidade do decreto municipal e reiterando seu compromisso com a promoção de viagens seguras. Nunes, entretanto, reforçou sua posição, declarando que não permitiria a atuação de “empresas assassinas e irresponsáveis” que, em sua visão, visam apenas o lucro em detrimento da segurança dos cidadãos.
Posteriormente, em junho, o governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas, sancionou uma lei que conferiu autonomia aos municípios para regulamentar o transporte individual de passageiros por motocicletas. Diante disso, a prefeitura paulistana reafirmou que a modalidade de mototáxi permanecerá proibida no município enquanto o assunto continua em discussão na Câmara Municipal. A administração municipal salientou que a legislação sancionada pelo governo estadual valida a postura de proibição, buscando evitar um modal de transporte que tem se mostrado perigoso, resultando em mortes de passageiros.
Rio de Janeiro: Regulamentação e Incentivo
Em contraste, a prefeitura do Rio de Janeiro optou por um caminho distinto. O município firmou um termo de cooperação com as principais plataformas de entregas e transporte, buscando acesso a dados para identificar pontos críticos e uniformizar as regras do setor. Os resultados dessa iniciativa estão previstos para serem divulgados ainda em agosto. O vice-prefeito Eduardo Cavalieri explicou a necessidade de equalizar e nivelar as regras para que todas as plataformas tenham um conjunto mínimo de diretrizes. Isso é crucial, conforme Cavalieri, porque muitos motociclistas atuam em diversos aplicativos, e a uniformidade impede que haja incentivo para migração entre plataformas ou que alguma delas se beneficie por não cumprir as normas.
Além disso, a prefeitura carioca planeja, com o apoio das plataformas, construir pontos de apoio para entregadores e mototaxistas. Outra medida em estudo é a ampliação das faixas exclusivas para motos em diversas vias da cidade. Cavalieri demonstrou apoio à categoria, afirmando o desejo de incentivar cada vez mais esses “empreendedores que cuidam das suas famílias a partir do trabalho com as motos”. Contudo, ele reconheceu a existência de uma epidemia de acidentes de moto na cidade, que viu o número de emplacamentos quintuplicar desde o início da pandemia.
Impacto dos Acidentes e Perfis das Vítimas
A gravidade da situação dos acidentes de moto no Rio de Janeiro é alarmante. Entre janeiro e junho de 2025, a rede municipal de saúde da capital fluminense atendeu 14.497 vítimas de acidentes com motocicletas em hospitais de urgência e emergência. Isso equivale a uma média de aproximadamente 80 atendimentos por dia na cidade. Em um esforço para combater essa realidade, o Hospital Municipal Barata Ribeiro, referência em ortopedia, recebeu o ministro da Saúde, Alexandre Padilha, que anunciou o programa Agora Tem Especialista, visando triplicar a capacidade de cirurgias, atendimentos e exames.
Segundo o secretário municipal de Saúde, Daniel Soranz, a prefeitura do Rio gasta anualmente mais de R$ 130 milhões no atendimento de vítimas de colisões, atropelamentos e quedas de motocicletas. O perfil predominante dessas vítimas é de homens jovens, com idades entre 23 e 33 anos, residentes em comunidades. Ademais, o período de maior incidência de incidentes ocorre nas primeiras horas da manhã, das 7h às 9h, durante o deslocamento para a rotina diária.
Esse perfil no Rio se assemelha às características observadas em nível nacional. Dados do Sistema de Informações de Mortalidade revelam que, entre 2010 e 2023, 56,5% das mortes em sinistros com motos foram de jovens na faixa etária de 20 a 39 anos. Aproximadamente 70% dessas vítimas possuíam menos de 11 anos de estudo, ou seja, não concluíram o ensino superior, e 61,2% eram negros. Em relação a 2024, um estudo do Ministério da Saúde, o Viva Inquérito 2024, que entrevistou 42 mil pessoas em unidades de pronto atendimento, indicou que uma em cada cinco vítimas de trânsito era trabalhador de aplicativos.
A Visão dos Especialistas: “Tragédia Anunciada” e Mobilidade
Para Erivelton Guedes, técnico de pesquisa e planejamento do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e doutor em engenharia de trânsito, a proliferação dos serviços de transporte de passageiros por motociclistas de aplicativos constitui uma “tragédia anunciada”. Ele defende que a regulamentação desses serviços não deveria ser considerada pelas autoridades, em virtude dos riscos significativos que representam para a saúde pública. Guedes argumenta que qualquer regulamentação, consequentemente, poderia acabar incentivando a modalidade e, talvez, transmitindo uma falsa sensação de segurança, como se o cumprimento de regras garantisse a ausência de perigos.
Guedes foi um dos responsáveis pela inclusão das mortes no trânsito no Atlas da Violência 2025, que aponta o usuário de motocicleta como a principal vítima dos sinistros de trânsito no Brasil. Entre 2019 e 2023, o número de vítimas de sinistros com motos aumentou de 11.182 para 13.477, o que corrobora a preocupação dos especialistas.
Por outro lado, Victor Pavarino, oficial técnico em segurança viária e prevenção de lesões não intencionais da Organização Pan-Americana da Saúde (Opas) no Brasil, acredita que é fundamental desincentivar a substituição do transporte público pelo transporte individual motorizado. Na sua visão, isso pode ser alcançado através de medidas de impacto coletivo, como a ampliação e melhoria do transporte público, a implementação de tarifa zero, e o estímulo a deslocamentos ativos, como caminhadas e uso de bicicletas, por meio da criação de cidades mais convidativas para pedestres e ciclistas. Entretanto, Pavarino também pondera que a moto representa uma possibilidade de mobilidade que foi negada a um segmento considerável da população por décadas. Conforme ele ressalta, em muitos contextos, como em favelas, a motocicleta é a única forma de grande parte da população acessar suas casas e garantir seu sustento.
A Perspectiva dos Motociclistas: Educação e Segurança
Alfredo Barbosa de Lima, diretor do Sindicato dos Empregados Motociclistas do Estado do Rio de Janeiro (Sindmoto-RJ), enfatiza a importância de reforçar a educação para a segurança no trânsito, tanto para motociclistas quanto para passageiros de mototáxis. Em sua análise, isso implica facilitar o acesso à Carteira Nacional de Habilitação (CNH) e elaborar orientações específicas para que os passageiros saibam como se comportar na moto sem atrapalhar os condutores. Barbosa de Lima compartilha sua experiência pessoal, relatando ter sofrido 17 acidentes de motocicleta. Diante disso, ele percebeu que as orientações básicas existentes não eram suficientes, levando-o a desenvolver, ao longo de oito anos, uma cartilha divulgada pelo sindicato da categoria. Ele conclui que é essencial um curso de direção defensiva que não reprove ninguém, pois o domínio da moto, em sua opinião, é adquirido com o tempo e a prática.