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Cinema indígena: além do olhar etnográfico

Cineastas indígenas no Fica 2025 questionam o olhar etnográfico dominante no cinema, buscando narrativas próprias e maior representatividade. Premiados como Takumã Kuikuro e Vincent Carelli discutem a superação de estereótipos e a importância de relações simétricas na produção audiovisual.
Cinema indígena: representatividade e narrativas próprias
Foto: Joédson Alves/Agência Brasil

Cinema Indígena: Quebrando o Olhar Etnográfico no FICA 2025

O 26º Festival Internacional de Cinema e Vídeo Ambiental (FICA), realizado na Cidade de Goiás e encerrado em 16 de junho de 2025, serviu como palco para importantes debates sobre o cinema indígena e sua relação com a produção audiovisual não indígena. Considerado o maior evento audiovisual com temática ambiental da América Latina, o FICA 2025 proporcionou um espaço crucial para discutir a superação de estereótipos e a busca por maior representatividade na indústria cinematográfica.

Entre os participantes, destacou-se Takumã Kuikuro, premiado cineasta do Parque Indígena do Xingu (Mato Grosso). Kuikuro identificou duas principais vertentes na produção cinematográfica indígena. Segundo ele, “existem duas formas de fazer cinema nas aldeias: documentar o conhecimento oral, preservando-o para as futuras gerações; e criar narrativas próprias sobre a realidade indígena, traduzindo-as para o português e exibindo-as para um público mais amplo”. Suas obras já foram premiadas em festivais nacionais e internacionais, incluindo Gramado, Brasília e o Presence Autochtone de Terres en Vues, em Montreal. Além disso, em 2017, recebeu uma bolsa de estudos da Queen Mary University of London, e em 2019, tornou-se o primeiro jurado indígena do Festival de Cinema Brasileiro de Brasília.

Amadurecimento e a Superação do Olhar Etnográfico

No FICA 2025, além de participar da seleção de obras, Kuikuro enfatizou a necessidade de transcender as narrativas etnográficas que historicamente dominaram a representação dos povos indígenas no cinema. “Precisamos superar a narrativa etnográfica como única linguagem sobre os indígenas no cinema”, argumentou ele. “Devemos explorar a linguagem cinematográfica para contar nossas próprias histórias, criar nossos personagens e produzir mais filmes de ficção”. Essa visão demonstra um amadurecimento significativo na produção audiovisual indígena, que busca afirmar sua própria voz e narrativas.

Compartilhando essa visão, Vincent Carelli, cineasta e indigenista, membro do júri oficial do FICA 2025 e criador do projeto Vídeo nas Aldeias (1987), ressaltou a diferença fundamental entre a produção cinematográfica indígena e não indígena. Para Carelli, “o acesso íntimo à língua, ao conhecimento e à convivência da cultura indígena proporciona um diferencial significativo em termos de conteúdo e sensibilidade, tanto para quem filma quanto para quem é filmado”. Ele reforça seu compromisso com a superação do cinema etnográfico, buscando “refletir as questões indígenas de maneira autêntica e respeitosa”.

Relações Simétricas e o Desafio da Representatividade

Apesar da crescente colaboração entre indígenas e não indígenas na produção cinematográfica, ainda persistem tensões, principalmente em relação à simetria nas relações de produção. Vincent Carelli apontou que “muitos indígenas relatam experiências negativas com a imprensa, pesquisadores, televisão e cineastas, devido à falta de simetria no relacionamento”. Por outro lado, há uma postura mais contundente dos jovens cineastas indígenas, que “estão se posicionando como diretores e assinando suas próprias obras”.

Takumã Kuikuro reforça essa perspectiva, relatando a dificuldade de acesso a festivais importantes. “Vejo muitos não indígenas se colocando acima dos indígenas, excluindo-os de festivais importantes. Eu mesmo participei do Festival de Gramado em 2011 e ganhei um Kikito, mas, desde então, raramente vi outros indígenas participando”, lamentou. Kléber Xukuru, cineasta e comunicador indígena, diretor da Ororubá Filmes, complementa: “Enfrentamos preconceito para ocupar esse espaço, mas os povos indígenas são resistentes e insistentes, e o audiovisual é uma ferramenta de luta”.

O Olhar Indígena em “Minha Terra Estrangeira”

O filme “Minha Terra Estrangeira”, principal convidado do FICA 2025, exemplifica esse debate sobre o olhar indígena. Este longa, sucesso no festival É Tudo Verdade em abril, apresenta uma colaboração entre o coletivo indígena Lakapoy, Louise Botkay (formada pelo projeto Vídeo nas Aldeias) e João Moreira Salles. A obra acompanha o cacique Almir Suruí e sua filha, a ativista Txai Suruí, durante as eleições de 2022. Uma cena crucial do filme evidencia o debate sobre o olhar do cineasta branco, questionando a focalização apenas na militância, enquanto um diretor indígena poderia explorar outras facetas da vida da ativista, como sua relação com a floresta e o amor.

Fórum Indígena e Janelas de Exibição

Em conclusão, o FICA 2025, com a criação do Fórum Indígena e de Povos Tradicionais, demonstra um avanço na promoção da produção audiovisual indígena. Este fórum, além dos já existentes fóruns de Cinema e Meio Ambiente, visa amplificar os saberes e conhecimentos dos povos dos territórios. Além disso, uma mostra competitiva foi dedicada exclusivamente a obras de realizadores indígenas e de povos e comunidades tradicionais, oferecendo uma “janela específica” para esses cineastas, sem excluir sua participação em outras mostras competitivas, segundo o diretor de programação do festival, Pedro Novaes. O festival, portanto, se consolida como um espaço importante para a discussão e a valorização do cinema indígena e sua luta pela representatividade.